(Não cobices a casa do teu
semelhante: não cobices a sua mulher, nem os seus escravos, nem
o seu gado, nem os seus jumentos, nem coisa nenhuma do que lhe
pertence)
Êxodo 20,17
A palavra usada ‘hamad“, em Latim concupire, não se
refere a um desejo vago, mas ao firme e determinado propósito, de
realizar a cobiça que se experimenta.
Para perceber exactamente o sentido desta palavra, é útil ler
toda a história de Amnon, o filho primogénito de David (2 Sm13), que
quer, a todo o custo e sob mau conselho, alcançar a satisfação do
desejo, mesmo sabendo violar qualquer código de honra.
É também esta mesma cobiça de David por Betsabé (2 Sm 11) que
leva ao duplo pecado de adultério e homicídio, correlacionado com o
engano e a traição.
No Ex. 20,17 a casa figura como o primeiro objecto de desejo. Com
a expressão a casa o autor refere-se à propriedade
fundiária com tudo o que é essencial à vida da família e do clã: a
mulher, o escravo, a escrava, o boi, o jumento.
Com o verbo desejar/desejar ardentemente, o autor refere-se
àquela pulsação interior, àquela fonte de desordem e de
desobediência, que habita em cada homem e em cada mulher e que é,
decisivamente, a causa primeira do mau procedimento humano. O apelo
instintivo para o mal que a pessoa humana deve dominar.
“Porventura não farias bem em levantar a fronte? Mas, se não o
fazes, o pecado aninha-se-te à porta. As suas intenções são contra
ti, embora tu possas dominá-lo”. (Gn 4,7)
Toda a pessoa humana experimenta aquela luta interior que Paulo
lembra na Carta aos Romanos, in Rm 7,14-25 (Tg 1,13-15) e que deve
ser superada com a ajuda do Espírito (Gl 5,16-26).
A este respeito Jesus é muito explícito em Mc 7, 14-23:
“Do seu íntimo, na verdade, isto é, do coração das pessoas
vêm os maus pensamentos e tudo os que as leva à imoralidade, ao
roubo, ao crime...”.
(ver igualmente Mt 5,28)
Este ensinamento de não se deixar tomar pela cobiça, quer
incentivar todos a colocar como última meta do desejo, não só a
própria vontade e o próprio bem, mas também o bem e o desejo dos
outros. Enquanto sociedade de consumo, a nossa sociedade afasta-se
desta perspectiva. É considerado normal ter sempre mais, sem
preocupação com os nossos irmãos. É considerada uma coisa boa a
concorrência em que o irmão pode tornar-se inimigo. Diz Choraqui:
“A economia de mercado baseia-se na forte pulsão do desejo. A
publicidade incita o homem ao consumo do que não tem. Assim como o
desejo é uma função da vida, a cobiça pode tornar-se um instrumento
de morte ”. Disto é exemplo o episódio referido no Livro dos
Números (Nm.21,4-9; 11,4-10), quando os israelitas não se
satisfazendo mais com o maná, um alimento pobre, cobiçam
outro.
Com o versículo Ex 20,17 concluem-se as dez palavras, que
se centram todas à volta de dois grandes pilares :
1. A recusa de qualquer idolatria Eu é que sou o Senhor
e mais ninguém (Is 45,18). Nada pode ocupar o lugar de Deus, nem
uma pessoa humana, nem um ser vivo, nem uma ideologia, nem a
ciência, nem a técnica, nem o mercado, nem o dinheiro… a lista pode
ser infinita, dada a facilidade com que a criatura coloca outra
coisa como valor supremo, no lugar de Deus.
2. A procura da justiça.
Procura a justiça, e só a justiça (Dt 16,20). A justiça
humana deve modelar-se a partir da justiça divina, que é terreno de
salvação e de vida plena para todos. É qualquer coisa que vai além
da justiça humana, que se enforma no respeito dos direitos de cada
um de nós. É empenhar-se em ajudar a outra pessoa a atingir em pleno
a imagem de Deus que traz em si. Sejam santos porque eu sou santo
(Lv 11,45).
Este Decálogo que Adonai dá directamente ao povo, sem a mediação
de Moisés, é o âmago do acordo da Aliança que Ele estipulou com
Israel. O amor a Deus e o amor ao próximo, estão estreitamente
ligados, como recordará Jesus (Mt 22, 34-40).
É ordenado ao povo que ponha as dez palavras em prática
para permanecer coerente com a responsabilidade assumida no monte
Sinai. “Todo o povo então respondeu: “Faremos tudo o que o Senhor
ordenou!” (Ex 19,8). Note-se que esta declaração de Israel
precede o conhecimento dos Dez Mandamentos, é feita confiando
cegamente num Deus que se crê Salvador. Isto é, ainda hoje, a
atitude típica do Hebreu praticante, que confia no seu Deus e vive,
sem contestar, de acordo com todas as normas que ele requer, mesmo
que lhe possam parecer estranhas.
“Povo de Israel escuta estas coisas e põe-nas em prática.
Assim serás feliz…” Dt 6,3.
Os dez mandamentos têm como último alvo tornar a criatura feliz
por viver e por ser capaz de temer ao seu Deus.
(Dt 5,32-6,3; Jr 1,25).
Na tradição Hebraica
Uma característica marcante da leitura hebraica da Torah é a
atenção às palavras que são empregues e ao seu posicionamento no
texto. Por isto se interrogam os rabinos sobre a articulação que
poderá haver entre o primeiro e o último termo do decálogo. No texto
hebraico o primeiro termo é Eu (“Eu Sou” do v. 2), e o último
é próximo (v.17). Isto indica que os
mandamentos se desenvolvem na relação do Eu com o
próximo, que não se pode eliminar ou desconhecer. Todo o
Decálogo, e até o primeiro mandamento, que parece envolver só Deus e
a sua criatura, na realidade reflectem-se na relação que ligam os
seres humanos uns aos outros.
O próximo, em hebraico rea, vem da raiz ra, (a
mesma raiz de mal), que significa instabilidade, oscilação.
O próximo é por isso alguém que não tem nem definição, nem
estabilidade, porque está sempre em movimento, aberto a todas as
possibilidades e a todos os futuros, que não pode ser descrito de
uma vez por todas, em definitivo. Amarás o teu próximo
deveria ser melhor expresso assim: respeitarás a instabilidade
existencial do outro, que te recorda a tua mesma instabilidade.
Por isso amar o teu próximo é difícil. Mas é com esta
alteridade que eu me devo sempre confrontar e devo respeitá-la,
sabendo que eu não a posso nem possuir, nem manipular.
Tudo isto me vem recordado nas dez palavras que são a
carta das relações justas entre os homens.
As dez palavras, por isso, contestam uma felicidade
individualista e o individualismo como fonte de bem-estar.
O verdadeiro bem-estar está estreitamente ligado ao
reconhecimento, em concreto, do valor infinito do outro.