A narrativa tem
carácter etiológico: quer explicar por que razão os Moabitas
e os Amonitas, tendo uma ligação étnica com os israelitas, foram, de
facto, excluídos da história da salvação iniciada com Abraão.
Os Moabitas e os
Amonitas viviam a Este do Jordão, ocupando as terras mais férteis do
reino de Salomão e eram considerados súbditos irebeldes do reino. O
modelo de Abraão, homem capaz de resolver de maneira pacífica a
contenda entre a sua tribo e a de Lot deveria servir-lhes de
exemplo.
O mito da origem destes
dois povos tinha qualquer coisa de terrificante, acontecida na zona
das duas cidades de Sodoma e Gomorra. Dizia-se que estas duas
cidades teriam sido engolidas pelo mar Morto, aquando de um tremendo
cataclismo. Um seu antepassado fora salvo, graças á intervenção de
um dos membros da sua família, um santo homem que habitava nas
montanhas de Mambré. Depois, Abraão tornou-se, na tradição dessas
regiões, o tio de Lot e este o respectivo patriarca (veja-se Gn
19,30-38).
v.3-4 do
Négueb a Betel… no lugar do altar… Abraão invocou o nome do Senhor.
Os santuários de Betel
e de Mambré (v.18), assim como o de Siquém, eram santuários
pré-israelíticos, de acordo com o seu mito de origem, mas no livro
do Génesis aparecem fundados por Abraão que fez construir altares e
aí invocou o nome do Senhor. É interessante notar que Abraão não faz
nenhum sacrifício, apenas constrói altares.
O autor quer sublinhar
a fé autêntica de Abraão. Calvino dirá: Abraão transportava um
altar no seu coração. O autor queria transmitir a ideia de que o
Senhor, no seguimento das preces de Abraão, tinha descido a esses
santuários, santificando-os e santificando a terra que agora era
dada a Israel.
v. 7 Por isto surgiu uma disputa… os Cananeus e os
Perizeus habitavam então na região. A disputa não diz respeito à
posse da terra. Vem dito, explicitamente, que a terra pertence aos
Cananeus e aos Perizeus. A contenda refere-se ao uso da mesma.
Provavelmente, a controvérsia diria respeito aos poços de água,
sempre escassa em terras palestinianas.
v. 8-9 Abraão
disse a Lot: que não haja discórdia entre mim e ti ….separa-te de
mim. Abraão aposta mais na paz do que no ganho (Pr 17,1). É
melhor separar-se do que litigar. Por idade e parentesco, Abraão
tinha o direito de fazer a primeira escolha, mas, em vez disso,
deixa que seja o sobrinho a escolher. Abraão tem o comportamento de
um homem generoso. O autor quer exaltar este procedimento de Abraão.
v. 10-11
Então Lot…viu que todo o vale do Jordão…era como o jardim do Senhor.
De Betel avista-se o
leito do Jordão junto ao lado meridional do Mar Morto.
Lot escolhe a parte
mais rica e fértil, fácil de trabalhar. O autor ironiza esta
escolha, por este paraíso se tornar em breve num inferno e, assim,
mostra a superficialidade de Lot que só olha à aparência e persegue
a vida fácil (veja-se Mt 7,13-14). Abraão contenta-se com a
zona montanhosa a oeste do Jordão.
v. 12 Lot
estabelece-se nas cidades do vale. Para o autor, esta escolha
mostra a pouca importância que Lot dava aos ensinamentos de Deus,
visto que as cidades eram consideradas lugares viciosos. Ainda por
cima, Lot decide fixar-se na cidade de Sodoma, conhecida pela vida
perversa dos seus habitantes, como se verá no capítulo 19.
v. 15 Toda a
terra que vês te darei a ti e à tua descendência para sempre. As
dimensões da terra são as do reino de Salomão (é usada aqui uma
técnica retrospectiva), de Dan no norte a Kadesh no sul. O dom da
terra é, explicitamente, para sempre. (veja-se Gn 17,8)
Será exactamente esta declaração que dará esperança aos exilados na
Babilónia os quais, tendo infringido a aliança, pensavam ter também
perdido a posse da terra. Vejam-se os cânticos do retorno dos
profetas, a partir de Is 54,1-10 e Jr 31, 3-14. Esta
terra é um dom gratuito que não pede nada em troca, não é uma
aliança que possa ser quebrada.
v. 16
Tornarei a tua descendência como o pó da terra. Está retomada a
promessa da descendência, estritamente ligada ao dom da terra.
Muitas prescrições da Torah só podem ser postas em prática na
Palestina. Veja-se a apresentação das primícias Dt 26,1-11.
A tríade Povo-Torah-Terra é no
Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia) uma tríade
inseparável.
Vem, todavia, recordado
no decurso do desenvolvimento da longa história hebraica (cerca
3.000 anos) que foram duas as vocações que os hebreus tomaram como
suas, sempre vividas de modo dialéctico: habitar na terra dos
Pais e habitar na diáspora. Desde tempos remotos até
hoje, muitos hebreus, embora fortemente ligados à sua terra, viveram
e vivem na diáspora, não só porque a isso foram obrigados, mas
também por sua livre escolha. Os hebreus que escolheram viver na
diáspora, vêem a terra prometida como realidade final, como
destino ainda a atingir e não como realidade inicial. A vocação para
a diáspora está já relacionada com Abraão, que nasce fora da terra
de Israel, sai e desce depois ao Egipto. A identidade
do povo hebraico nasce fora da terra prometida, no deserto,
na terra de ninguém. Aí receberam a Torah, o ensinamento.
Nas três grandes festas
hebraicas que têm referenciais históricos, Pesah (Páscoa, a
saída do Egipto ), Shavuòth (Pentecostes, o dom da Torah),
Sukkòth (festa das cabanas, habitar no deserto) o tema da
terra não aparece; pelo contrário, sublinha-se o migrar e a
precariedade do habitar.
v. 17
Levantai-vos, percorrei a região em comprimento e em largura… O
convite é do âmbito do Direito, a inspecção é um acto simbólico,
mediante o qual se torna legalmente válida a tomada de posse de uma
propriedade rural.
v. 18 Ebron com
o santuário de Mambré é o lugar que a tradição concede de modo
específico a Abraão e que incluirá a caverna para sepultar a mulher
Sara (Gn 23, 3-20), e que se tornará o túmulo de todos os
patriarcas, ainda hoje venerado por todos os hebreus, muçulmanos e
cristãos. Um dia David inaugurará aqui o seu reino (2 Sam 2,1-4).