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Uma História de Irmãos

 

Génesis, capítulo 37

 

Nicoletta Crosti

 

Os autores do livro do Génesis sentiram a necessidade de reunir as tradições dos patriarcas, sem datação histórica, com o acontecimento histórico do Êxodo, o evento fundante da história de  Israel em meados do século XIII a.C. Por isso utilizaram uma tradição antiga para uma história à parte, que fazia situar Jacob  e os seus filhos no Egipto. A narrativa segue o modelo do típico motivo de uma “história de irmãos”, própria da literatura do Médio Oriente Antigo. Trata-se de uma história completamente laica. Deus parece ausente, mas as personagens são crentes. O protagonista é José, uma figura ideal com muitas qualidades, forte e equilibrado. É o inocente que sofre e que sabe reconhecer a acção de Deus através dos acontecimentos. A tradição patrística vê em José a figura de Cristo, vendido por Judá e tornado o salvador dos irmãos.

Toda a história de José é o reconhecimento de uma providência de Deus, sempre presente, que age ainda que através do mal realizado pelos homens. Por isso a história humana leva sempre consigo um gérmen de salvação e de renascimento.

v. 1 Jacob estabeleceu-se no país onde o seu pai fora estrangeiro.  Terminara o nomadismo dos patriarcas com o seu respectivo significado teológico. Jacob tornara-se sedentário.

v.2a Esta é a história dos descendentes de Jacob. José com a idade de dezassete anos era pastor do rebanho em conjunto com os seus irmãos. A história de José começa com a fórmula estereotipada do livro do “toledot” (genealogias) da tradição sacerdotal. A referência a Jacob serve para dar unidade à história, é o pai de quem tudo parte e que continua a estar presente, morrerá apenas quando a história de José se concluir.

A palavra irmãos é importante, reaparecerá 19 vezes neste capítulo. A família é apresentada como unida pelo trabalho.

v.2b José relatou ao pai a má fama a respeito dos seus irmãos. De súbito assinala-se um atributo negativo da família, não obstante trabalharem em conjunto.

v. 3 Israel amava José mais do que todos os seus filhos ... tinha-lhe feito uma túnica de mangas compridas. É corrente na literatura o tema da predilecção de um progenitor por um dos seus filhos. Já se encontrava com os progenitores de Jacob e de Esaú (Gn 25,28). As mangas compridas (Trad. Literal: com ornamentos) não se adaptavam ao trabalho. José era tratado como um princípe. Isto é a base para uma desigualdade injusta entre os irmãos.

v. 4 Os seus irmãos odiavam-no ... e não podiaam falar-lhe amigavelmente. A desigualdade desencadeia a inveja. A “fraternidade” é infringida.

v. 5 Ora José teve um sonho e conta-o aos irmãos que passaram a odiá-lo ainda mais. Os sonhos caracterizam José, aparecem sempre aos pares. São sonhos profanos que podem ser entendidos como uma profecia, ou como expressão de uam atitude de superioridade. É neste sentido que os irmãos os entendem. Para os antigos, o sonho era um acontecimento muito sério, que ninguém vivia como uma coisa pessoal, mas que deveria ser partilhado. Na Bíblia há ainda uma tradição diferente que considera os sonhos  vãos e enganadores (Sir 34,1-7; Jr 29,8)

vv. 6-8 ... o meu feixe ergueu-se e ficou de pé e os vossos feixes ... prostraram-se diante do meu ... odiaram-no ainda mais. José parece não se dar conta do absurdo do seu sonho, sendo ele o penúltimo da família.

vv.9-11 …  o sol, a lua e onze estrelas prostraram-se diante de mim ... É o segundo sonho, que escandalizou o pai, que disse: quererás reinar sobre nós? O autor quer levar o leitor a dar-se conta da inveja que se está acumulando, e que torna compreensível a violência dos irmãos que irá seguir-se.

vv. 12-17 Jacob envia o filho José aos irmãos para saber como vão as coisas. José comporta-se como filho exemplar e diz: estou pronto. E obedece imediatamnete ao pai, apesar de saber que era odiado pelos irmãos. Faz cerca de 80 kilómetros e vai de Hébron a Siquém e já com algum cansaço descobre que os irmãos estão ainda mais a norte, em Dotain, onde os encontrou.

v. 18-20 Eles viram-no de longe e ... planearam matá-lo ... eis o sonhador ... matemo-lo e lancemo-lo em alguma cisterna. Os irmãos ruídos de inveja, não deixam escapar a ocasião de terem José, sózinho e indefeso, nas suas mãos, decidem eliminá-lo. Repete-se o acontecimento de Cain, que não sabe defender-se do demónio que está à sua porta e obrigará Deus a fazer-lhe a pergunta: onde está o teu irmão Abel? (Gn4,3-12).

v. 21-22 Mas Ruben intervem e quer salvá-lo ... não derrameis o sangue. O autor quer amenizar a maldade dos irmãos e demonstrar que Rúben, o mais velho, está disposto a proteger o mais novo e a salvá-lo

vv. 23-27 A maldade dos irmãos, agora suavisada pelas palavras de Rúben, levou finalmente a lançar José numa cisterna, mas sem água, depois de lhe terem tirado a túnica do privilégio. José não reage, não se lamenta, não tenta defender-se, é vítima da situação. A providência de Deus vem em sua ajuda e apresenta aos irmãos uma solução inesperada; aparece uma caravana de Ismaelitas em direcção ao Egipto. Escutando a proposta de Judá, os irmãos decidem vender-lhes o irmão, não se manchando assim por um delito grave. Os irmãos não se dão conta de que será o seu próprio acto de entregarem José que actualizará a profecia dos sonhos. Na narrativa sente-se a ironia do autor.

v.28 … por vinte siclos de prata venderam José aos Ismaelitas. Assim, José foi conduzido ao Egipto. 20 siclos é o preço fixado na lei para satisfazer um voto relativo a um jovem com menos de 20 anos (Lv 27,4)

v. 29 Ruben voltou à cisterna mas José já lá não estava. Então rasgou as suas vestes ... Rúben, o mais velho, está agora numa situação desesperada, como irá justificar-se diante do pai?

v. 31-32 Degolaram um cabrito e mergulharam a túnica no sangue ... Ao mesmo tempo, os irmãos tramam uma vingança cruel para com o pai que privilegiava José. Através da famosa túnica, que, sendo belíssima, passa a tornar-se num sinal de morte. A túnica ensanguentada tinha ainda um alcance jurídico, pois que valeria como prova de morte por agressão de boi ( Ex 21,28). Os irmãos souberam assim desculpar-se.

v.33  José foi despedaçado! Jacob rasgou as suas vestes ... É comovente e trágico o grito do pai. Jacob, que tinha enganado o seu pai (Gn 27), agora é, por sua vez, enganado.

v. 34-35 Jacob faz o luto mas não quer viver mais, tão forte é a sua dor.

O capítulo termina de modo trágico. Rúben, o irmão mais velho, José, o irmão roubado à família, Jacob, o pai, estão em sofrimento.

Um delito contra a fraternidade traz sofrimento a todos. A fraternidade é dom de Deus. Com a sua graça vencem-se os demónios que tentam destruí-la. Mt 23,8-11

   
   
 

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