Na tradição hebraica o relato de
Génesis 22 tem um enorme alcance. Todas as gerações o comentaram e o
fizeram seu. Exprime o ponto máximo da fé hebraica e a voz dos
mártires das perseguições anti-semitas de todos os tempos. O relato
chama-se ‘aqedah de Isaac (as amarras de Isaac),
referenciando o v. 9: Abraão … atou Isaac. Neste relato,
Isaac não é morto mas apenas amarrado numa atitude de perfeita
submissão ao pedido de Adonai, representando de maneira emblemática
a exigência do Pacto. As cordas com as quais Isaac é amarrado são os
preceitos da Torah e a disponibilidade manifestada por Isaac ao ser
amarrado torna-se exemplo da aceitação total da Torah por parte de
cada hebreu.
É aquela fé nua que não tem outro apoio senão a
palavra de Deus.
Ainda hoje, cada hebreu se sente
“atado” ao destino Hebraico, tantas vezes doloroso, como o de Abraão
e Isaac no c. 22.
Este relato é lembrado nas orações
do início do ano Judaico, com a intenção de pedir a Deus que use a
sua misericórdia para com a infidelidade do seu povo. De facto, a
fidelidade a todo o custo, a dócil aceitação da vontade de Adonai,
dá aos hebreus o direito de ‘discutir’ com o Senhor e de lhe
recordar o mérito dos seus pais.
No Targum Neófitos lêem-se as
seguintes palavras de Abraão: O meu coração não hesitou quando me
disseste para sacrificar o meu filho Isaac, para o tornar em pó e
cinzas à tua frente. E, agora, quando os teus filhos se encontram em
atribulação, recorda-te da ‘aqedah do seu pai Isaac, escuta a voz
das suas preces e responde -lhes salvando-os de todas as
tribulações.
Só podemos discutir com Deus se
nos sentimos ligados a ele e ele estiver ligado a nós. É o que fará
Jesus gritando a Deus por o ter abandonado, mas continuando a
chamá-lo meu Deus (Sl 22/21,2).
Segundo a tradição hebraica, as
amarras de Isaac constituem a última das 10 provas às quais Abraão é
submetido. Um midrash comenta o v.2 fazendo Deus falar assim:
Peço-te que superes por mim esta prova, para que não se diga que as
provas precedentes não eram verdadeiras. O c. 22 quer demonstrar
que, no início da história de Israel, Abraão antecipou todas as
provas dos seus descendentes e isto é uma garantia para o futuro de
todo o povo. Diz um midrash: Nos olhos de Abraão estavam os olhos
de Isaac e os olhos de Isaac estavam voltados para os anjos do
excelso: Abraão não os via. Então apareceu uma voz do céu que disse:
venham e vejam estes dois únicos no mundo! Um sacrifica e um é
sacrificado: o que sacrifica não hesita e o que é sacrificado
apresenta o seu pescoço. Do ponto de vista literário este relato
é extremamente conciso, deixando muitas coisas suspensas, deixando
adivinhá-las. Estes mesmos silêncios e estas lacunas foram
explorados no Talmude e na tradição hebraica posterior. Deste modo,
vem inscrito um diálogo entre Abraão e Satanás (o acusador), no qual
Satanás assume o papel da razão e refere a Abraão o absurdo do
pedido de Deus. Satanás disse a Abraão: Velho, será que perdeste a
cabeça? Vais matar o filho que tiveste aos cem anos? Sim, disse
Abraão, fá-lo-ei. Mas se te tentar ainda mais, poderás resistir? Ele
respondeu: Ainda mais. Acrescentou Satanás: Amanhã dirás: assassino,
és culpado, porque mataste o teu filho. Vais continuar mesmo assim?
Sim, continuarei, respondeu Abraão. E como Satanás nada conseguiu
foi ter com Isaac e disse-lhe: Filho de uma pobre mulher, vão
degolar-te. Ele ripostou: lá estarei. Satanás não só insinua que
Deus pede o absurdo e pede até o que é moralmente reprovável. Com
este midrash quer dizer-se que Abraão estava pronto para obedecer
para além de todo o limite razoável. De facto, a fé pode fazer-nos
experimentar um denso escuro e isto não a torna nem protectora nem
reconfortante. O homem de fé não sabe já se quem está a falar é Deus
ou qualquer outro, porque o acusador apresenta sempre óptimos
argumentos (Gn 3,5). Todavia, se é Deus que falou ao crente, este
sabe muito bem muito que, embora a palavra pareça não razoável, quer
dizer que é Deus que tem em mãos a questão, é Ele que providenciará
a solução: Deus providenciará o cordeiro para o sacrifício,..
(Gn 22,8). O crente é, assim, sempre envolvido num difícil
discernimento entre vozes contraditórias. No entanto, é a
obscuridade desta fé que muitas vezes constrói uma nova compreensão
do real. (Jb 42,5).
Na mesma linha está a mensagem
fundamental do Ex 24,7: faremos e escutaremos cuja lógica
parece paradoxal, uma vez que se invertem os termos. Em vez disso,
sabemos que no judaísmo
As
Palavras de Deus só se entendem fazendo-as e vivendo-as, como Abraão
no c.22; é isto que é o verdadeiro escutar.
É aí que reside a diferença de
reacção entre Abraão, um hebreu, quase muda mas activa e a de Job,
um pagão.
O famoso rabino Rashi de Troyes
(1040-1105) procura conjugar a exigência racional (Deus pode pôr à
prova mas nunca pode pedir o sacrifício de uma vida porque é o Deus
vivo) com a lógica da narrativa que parece contradizê-la. De facto,
Rashi simplifica o relato e diz que tudo nasce de um equívoco entre
Deus e Abraão. Este último não percebe o mandamento de Deus que lhe
está dizendo no v. 2 eleva-o ... em holocausto e não o
imoles . De facto, o Santo, bendito seja, não queria que Abraão
imolasse Isaac, mas que o fizesse subir até ao monte, para o
preparar como um holocausto. E depois que o fez elevar, Deus disse
para o fazer descer. Assim, a vontade de Deus não se contradiz no
que respeita à promessa de descendência.
A poesia da sinagoga, baseando-se
na expressão caminharam os dois juntos (vv.6.8.), repetida
por duas vezes, sublinha a perfeita comunhão de intenção entre o que
amarra e o que é amarrado, na mesmíssima atitude do Eis-me aqui
presente no capítulo. Diz-se que Isaac disse a Abraão: Pai,
amarra-me bem, para que não te magoes e não seja invalidada a tua
oferta, e eu não seja atirado para o abismo da perdição no mundo
futuro.
Este filho, porque se tornou
disponível aos projectos de Deus, não pertence mais ao pai, mas
simboliza a própria vida, que Deus quer proteger e da qual Ele é o
único Senhor.
A atitude de Abraão para com o
filho, depois da descida do monte, mudou profundamente, ele já não
lhe pertence. Ora, obedecendo a Deus, Abraão volta a ser só filho.
Depois deste relato, segundo a tradição hebraica, o legado de uma
geração a outra não pode mais ser de poder, mas apenas de
transmissão.
Um antigo midrash, aproveitando a
flexibilidade do hebraico, traduz a expressão porque agora sei
do v. 12 por agora mostrarei a todos que tu me amas. De facto, Deus
sabe do amor de Abraão por Ele desde sempre, e por isso o põe à
prova, mas agora quer dá-lo a saber, e também dar a conhecer aos
outros, ao mundo, às nações, para que se saiba até que ponto se pode
confiar em Deus.