© "Via sacra"  Bill Ross
 

Setembro - 2010

 

A Tua Palavra Ilumina os Meus Passos

 

Génesis

AS AMARRAS DE ISAAC
Génesis 22, 1-19 [ Parte II ]
- A interpretação hebraica
   
Autora: Nicoletta Crosti
 

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Na tradição hebraica o relato de Génesis 22 tem um enorme alcance. Todas as gerações o comentaram e o fizeram seu. Exprime o ponto máximo da fé hebraica e a voz dos mártires das perseguições anti-semitas de todos os tempos. O relato chama-se ‘aqedah de Isaac (as amarras de Isaac), referenciando o v. 9: Abraão … atou Isaac. Neste relato, Isaac não é morto mas apenas amarrado numa atitude de perfeita submissão ao pedido de Adonai, representando de maneira emblemática a exigência do Pacto. As cordas com as quais Isaac é amarrado são os preceitos da Torah e a disponibilidade manifestada por Isaac ao ser amarrado torna-se exemplo da aceitação total da Torah por parte de cada hebreu.

É aquela fé nua que não tem outro apoio senão a palavra de Deus.

Ainda hoje, cada hebreu se sente “atado” ao destino Hebraico, tantas vezes doloroso, como o de Abraão e Isaac no c. 22.

Este relato é lembrado nas orações do início do ano Judaico, com a intenção de pedir a Deus que use a sua misericórdia para com a infidelidade do seu povo. De facto, a fidelidade a todo o custo, a dócil aceitação da vontade de Adonai, dá aos hebreus o direito de ‘discutir’ com o Senhor e de lhe recordar o mérito dos seus pais.

No Targum Neófitos lêem-se as seguintes palavras de Abraão: O meu coração não hesitou quando me disseste para sacrificar o meu filho Isaac, para o tornar em pó e cinzas à tua frente. E, agora, quando os teus filhos se encontram em atribulação, recorda-te da ‘aqedah do seu pai Isaac, escuta a voz das suas preces e responde -lhes salvando-os de todas as tribulações.

Só podemos discutir com Deus se nos sentimos ligados a ele e ele estiver ligado a nós. É o que fará Jesus gritando a Deus por o ter abandonado, mas continuando a chamá-lo meu Deus (Sl 22/21,2).

Segundo a tradição hebraica, as amarras de Isaac constituem a última das 10 provas às quais Abraão é submetido. Um midrash comenta o v.2 fazendo Deus falar assim: Peço-te que superes por mim esta prova, para que não se diga que as provas precedentes não eram verdadeiras. O c. 22 quer demonstrar que, no início da história de Israel, Abraão antecipou todas as provas dos seus descendentes e isto é uma garantia para o futuro de todo o povo. Diz um midrash: Nos olhos de Abraão estavam os olhos de Isaac e os olhos de Isaac estavam voltados para os anjos do excelso: Abraão não os via. Então apareceu uma voz do céu que disse: venham e vejam estes dois únicos no mundo! Um sacrifica e um é sacrificado: o que sacrifica não hesita e o que é sacrificado apresenta o seu pescoço. Do ponto de vista literário este relato é extremamente conciso, deixando muitas coisas suspensas, deixando adivinhá-las. Estes mesmos silêncios e estas lacunas foram explorados no Talmude e na tradição hebraica posterior. Deste modo, vem inscrito um diálogo entre Abraão e Satanás (o acusador), no qual Satanás assume o papel da razão e refere a Abraão o absurdo do pedido de Deus. Satanás disse a Abraão: Velho, será que perdeste a cabeça? Vais matar o filho que tiveste aos cem anos? Sim, disse Abraão, fá-lo-ei. Mas se te tentar ainda mais, poderás resistir? Ele respondeu: Ainda mais. Acrescentou Satanás: Amanhã dirás: assassino, és culpado, porque mataste o teu filho. Vais continuar mesmo assim? Sim, continuarei, respondeu Abraão. E como Satanás nada conseguiu foi ter com Isaac e disse-lhe: Filho de uma pobre mulher, vão degolar-te. Ele ripostou: lá estarei. Satanás não só insinua que Deus pede o absurdo e pede até o que é moralmente reprovável. Com este midrash quer dizer-se que Abraão estava pronto para obedecer para além de todo o limite razoável. De facto, a fé pode fazer-nos experimentar um denso escuro e isto não a torna nem protectora nem reconfortante. O homem de fé não sabe já se quem está a falar é Deus ou qualquer outro, porque o acusador apresenta sempre óptimos argumentos (Gn 3,5). Todavia, se é Deus que falou ao crente, este sabe muito bem muito que, embora a palavra pareça não razoável, quer dizer que é Deus que tem em mãos a questão, é Ele que providenciará a solução: Deus providenciará o cordeiro para o sacrifício,.. (Gn 22,8). O crente é, assim, sempre envolvido num difícil discernimento entre vozes contraditórias. No entanto, é a obscuridade desta fé que muitas vezes constrói uma nova compreensão do real. (Jb 42,5).

Na mesma linha está a mensagem fundamental do Ex 24,7: faremos e escutaremos cuja lógica parece paradoxal, uma vez que se invertem os termos. Em vez disso, sabemos que no judaísmo

As Palavras de Deus só se entendem fazendo-as e vivendo-as, como Abraão no c.22; é isto que é o verdadeiro escutar.

É aí que reside a diferença de reacção entre Abraão, um hebreu, quase muda mas activa e a de Job, um pagão.

O famoso rabino Rashi de Troyes (1040-1105) procura conjugar a exigência racional (Deus pode pôr à prova mas nunca pode pedir o sacrifício de uma vida porque é o Deus vivo) com a lógica da narrativa que parece contradizê-la. De facto, Rashi simplifica o relato e diz que tudo nasce de um equívoco entre Deus e Abraão. Este último não percebe o mandamento de Deus que lhe está dizendo no v. 2 eleva-o ... em holocausto e não o imoles . De facto, o Santo, bendito seja, não queria que Abraão imolasse Isaac, mas que o fizesse subir até ao monte, para o preparar como um holocausto. E depois que o fez elevar, Deus disse para o fazer descer. Assim, a vontade de Deus não se contradiz no que respeita à promessa de descendência.

A poesia da sinagoga, baseando-se na expressão caminharam os dois juntos (vv.6.8.), repetida por duas vezes, sublinha a perfeita comunhão de intenção entre o que amarra e o que é amarrado, na mesmíssima atitude do Eis-me aqui presente no capítulo. Diz-se que Isaac disse a Abraão: Pai, amarra-me bem, para que não te magoes e não seja invalidada a tua oferta, e eu não seja atirado para o abismo da perdição no mundo futuro.

Este filho, porque se tornou disponível aos projectos de Deus, não pertence mais ao pai, mas simboliza a própria vida, que Deus quer proteger e da qual Ele é o único Senhor.

A atitude de Abraão para com o filho, depois da descida do monte, mudou profundamente, ele já não lhe pertence. Ora, obedecendo a Deus, Abraão volta a ser só filho. Depois deste relato, segundo a tradição hebraica, o legado de uma geração a outra não pode mais ser de poder, mas apenas de transmissão.

Um antigo midrash, aproveitando a flexibilidade do hebraico, traduz a expressão porque agora sei do v. 12 por agora mostrarei a todos que tu me amas. De facto, Deus sabe do amor de Abraão por Ele desde sempre, e por isso o põe à prova, mas agora quer dá-lo a saber, e também dar a conhecer aos outros, ao mundo, às nações, para que se saiba até que ponto se pode confiar em Deus.

   

Tradução: Ana Luísa Teixeira

   

   

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