Este
capítulo agrupa alguns acontecimentos que dizem respeito a Isaac.
Este é apresentado como o legítimo sucessor de Abraão, do qual, em
parte, repete a biografia. São poucas as tradições que o mencionam,
será este o único capítulo que o refere.
Isaac
representa o tipo de nómada, que possuindo gado miúdo, move-se com
os seus rebanhos segundo as leis de alternância das pastagens.
v. 1
Sobreveio uma fome naquela terra… Na Palestina a seca era
frequente e geralmente os nómadas desciam ao Egipto para superar a
crise.
v. 2
Não desças ao Egipto, habita a terra que eu te indicar. Deus
não permite que Isaac emigre. Quer que os patriarcas se liguem à
terra da Palestina.
v.
3-4 Vive aí durante algum tempo como estrangeiro e eu estarei
contigo e abençoar-te-ei… pois é a ti e à tua descendência que eu
darei toda esta terra e manterei o juramento. São repropostas as
promessas já feitas a Abraão: a da terra (Gn 12,7; 13, 14-17;
15, 18; 17,8), a da descendência (Gn 12,2.7; 15,5; 17,2-8;
21.12; 22,17), a da aliança (Gn 15, 7-21;17,1-8) e a da
bênção (Gn 12, 3; 22,17).
Permanecer como estrangeiro significava verdadeiramente viver numa
situação precária, Adonai disse a Isaac: “eu estarei contigo”.
Isaac, como Abraão, deve confiar em Deus e apoiar-se n’ Ele.
v. 5
…pelo facto de Abraão ter escutado a minha voz e observado os
meus ensinamentos. Este conceito vem retomado no Novo Testamento
(Ro 4, 3; 11; 16-22; Gl 3, 6-9). A fé de Abraão permitiu a Deus
iniciar a história da salvação.
A
história da salvação procede de Deus, mas não pode prosseguir
sem o contributo da livre vontade dos homens e das mulheres que
dão consentimento aos Seus planos.
vv.
6-11 Vem reproposta através de Isaac a mesma tradição que, por
duas vezes, foi referida a Abraão; Isaac mente relativamente à sua
mulher para poder salvar a vida.
v. 7
ele disse-lhes: é minha irmã. De acordo com tudo o que Deus
lhe tinha pedido, Isaac ficou na cidade de Gerar (v.6). Aqui os
costumes eram muito menos rígidos, e para os nómadas a vida da
cidade era imoral. Facilmente Isaac poderia ser assassinado para que
depois pudessem abusar da sua mulher, uma mulher atraente (v.7). O
autor não tem escrúpulos de apresentar, como já o tinha feito com
Abraão, um patriarca mentiroso. A história da salvação tem mais
necessidade dos homens que confiam em Deus e que aceitam os seus
planos, do que dos homens moralmente irrepreensíveis, segundo a
nossa ética.
Não é
por acaso que o autor indica que o lado da razão seria o da
falsidade: (vv.7 e 9): ter salvo a vida.
v. 8
...e viu Isaac acariciar sua mulher Rebeca.
O autor
quer desmascarar a falsidade de Isaac e fá-lo através de Abimelec,
que observa e suspeita.
v.9
responde-lhe Isaac: porque disse a mim próprio: que eu não
morra por causa dela. Isaac admite a mentira e dá a sua razão.
v. 9
Que fizeste? É a pergunta que mostra a honestidade do rei e a
culpa de Isaac. Pergunta-chave que Deus já tinha feito a Eva e a
Caim (Gn 3,13; 4,10). Pergunta que exige uma resposta, levando o
interpelado a dar-se conta da gravidade do seu acto e das
consequências negativas que ele produz.
Deus quer que o homem se
comporte sempre como criatura responsável.
v. 11
Quem tocar neste homem ou na sua mulher será levado à morte.
Abimelec exige dos seus súbditos o pleno respeito do dever da
hospitalidade. O autor quer que seja claro para todos que violar ou
assassinar é um pecado gravíssimo, até para os pagãos (Es 20,14;
Dt5,18; Dt 22,22; Lv 18,20).
TRÊS NARRATIVAS DE
UMA ÚNICA TRADIÇÃO
Gn 12, 11-20; Gn 20; Gn 26,6-11
A
presença no livro do Génesis de três narrativas nascida de uma única
tradição ajuda-nos a entender a mentalidade dos autores bíblicos.
Estes queriam, por um lado, manter-se fieis ao conteúdo fundamental
da narrativa oral, mas, por outro lado, sentiam-se livres para mudar
o contexto, as personagens e os pormenores secundários.
Assim
vê-se que:
- As
personagens envolvidas são diversas: Abraão e o Faraó, Abraão e
Abimelec, Isaac e Abimelec.
- O
contexto muda: no Egipto, em Gerar entre os Filisteus; em Gerar
durante um período de fome.
- O
disfarce da mentira é diferente: pragas, diálogo entre Deus e
Abimelec, Abimelec que vê a manifestação de afecto de Isaac para com
Rebeca.
Só no
Egipto o adultério se consuma, as outras narrativas deixam apenas
pressupor o risco de que tal possa acontecer.
O núcleo
da narrativa dizia: 1. Um patriarca
tinha mentido para salvar a vida; 2. O
Senhor considera culpa grave cometer adultério, abusar da mulher de
outrem. 3. O drama tem um final feliz.
Qual é
o Deus que é revelado?
O
discurso sobre Deus é o mesmo nas três narrativas.
• Adonai
é um Deus que protege quem nele confia, não lesando a sua liberdade
e as suas iniciativas. Deus espera que os homens e as mulheres
saibam afrontar com coragem todos os acontecimentos, utilizando até
ao fim e na totalidade os talentos recebidos.
• Adonai
é um Deus que ensina a sacralidade do matrimónio a todos, hebreus e
pagãos. A palavra unir-se-á (davâq) do Gn 2,24 (o homem…
unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne) é a mesma
palavra usada para exprimir a relação de amor que liga o fiel a
Deus. (Dt 10,20). A relação de amor do casal torna-se, então,
símbolo da relação de amor da criatura com o seu Deus. Por isso o
adultério e a infidelidade não são admitidos.
• Adonai
é um Deus que não quer a morte do pecador, mas quer que ele se
converta e viva (Ez 18,23). Por isso, a pergunta dirigida ao
patriarca: “Que fizeste?”, afim de que ele se dê conta que
mentir é mal, que gera outro mal e, por consequência, não volte a
mentir. (Ex 20,17; 23,7).