A santidade é-nos dada, todos os dias, como possibilidade,
escreve Sophia de Melo Breyner, num dos seus contos a que sempre
recorremos com proveito e imensa satisfação interior. Refiro-me
a “Retrato de Mónica”.
Contudo, apesar desta repetida quotidianidade, parece que
afastamos, do nosso horizonte de propósitos e referentes de
vida, a santidade como caminho de realização pessoal e, mais
ainda, como virtude devidamente valorizada no espaço público.
Diria que a santidade é, hoje, uma palavra silenciada: não entra
nos telejornais nem, tão pouco, nas nossas conversas pessoais
com os familiares e amigos; não consta como proposta explícita
dos projectos educativos para os mais novos; não inspira as
telenovelas nem os jogos de computador com que crianças e jovens
ocupam boa parte do seu tempo; mesmo nos meios de iniciação e
formação cristã ocupa um lugar envergonhado.
Qual a razão deste ensurdecedor silêncio?
Por um lado, confundimos santidade com um ideal inatingível para
as pessoas comuns, ou mesmo como um qualquer caminho exótico
percorrido por algumas personagens do passado, vidas a que
talvez reconheçamos terem sido revestidas de alguma heroicidade
que até poderão merecer a nossa admiração, mas sem relevância
nem pontes para os desafios que devemos enfrentar na nossa vida
corrente.
Este tipo de raciocínio afasta-nos – e muito – do Evangelho e da
tradição da Igreja, como foi solenemente afirmado pela doutrina
do concílio Vaticano II. A comprová-lo duas referências:
Uma citação do Evangelho:
Sede santos como o vosso Pai é santo (Mt 5,48).
Todo o capítulo 5 da Constituição
Lumen Gentium cujo título é bem
elucidativo:
A santidade é a vocação comum dos cristãos
(nº 39).
Nada mais claro acerca do lugar primordial da santidade na vida
dos cristãos. No primeiro caso, é o próprio Jesus que, sem
rodeios, aponta aos discípulos a santidade como paradigma de
vida; no segundo caso, a doutrina conciliar afasta liminarmente
a ideia de que a santidade esteja reservada a algumas pessoas
com condições de vida especiais que as retiram do mundo e do
quotidiano da vida comum e afirma que todos, sem excepção, são
chamados à santidade.
Em que consiste a santidade?
José Tolentino Mendonça serve-se do texto das bem-aventuranças
para dizer, em linguagem de teologia poética: É naquilo que
somos e fazemos, no mapa vulgaríssimo de quanto buscamos, na
humilde e mesmo monótona geografia que nos situa, na pequena
história que dia a dia protagonizamos que podemos ligar o céu à
terra. É isso a santidade.
Para os cristãos, a santidade é essa busca incessante de
trazer para a nossa vida a Palavra de Deus e a sua revelação em
Jesus Cristo, deixando que ela tome corpo, isto é, ganhe
concretização e densidade, tanto na vida pessoal e na relação de
uns com os outros, como no espaço público, onde se estabelecem
as leis e os contractos, onde se alicerçam os fundamentos das
instituições e se definem os seus modos de funcionamento, onde
se dirimem os conflitos e onde, enfim, se buscam soluções de
viver melhor.
Neste tempo e lugar em que habitamos, a busca da santidade no
quotidiano da vida pessoal bem como no espaço público merece
particular atenção e empenho.
O mundo desbussolado, que conhecemos, precisa de pessoas e de
comunidades capazes de apontar alternativas a uma cultura que
está manchada pelo egoísmo e pela ganância, precisa de superar
uma mundividência que gera frustração, desigualdade, injustiça
e, a prazo, só pode gerundiar sociedades permanentemente
ameaçadas pelo caos e pela barbárie, onde o próprio ser humano
corre o risco de se deixar asfixiar e, ele próprio, perder o
norte.
Só o caminho da santidade, que é o caminho do Amor, poderá
conduzir à felicidade, pessoal e colectiva, à realização pessoal
e ao bem comum e, concomitantemente, promover o indispensável
reforço do progresso material e espiritual, da coesão social e
da paz.
A santidade é como um vitral de múltiplas cores, ainda que
mantenha um conjunto de cores básicas, como a verdade, a
humildade, a compaixão, o respeito do outro, o amor ao próximo.
Nos nossos dias e tendo em conta os desafios críticos que
conhecemos, a santidade deve incluir, além das virtudes básicas,
duas dimensões essenciais: a empatia e o cuidado.
A empatia, nos seus dois sentidos que se completam: uma
identificação emocional com o eu do outro e uma compreensão
mútua. Precisamos, urgentemente, de valorizar e pôr em prática
um sentido empático para com o outro, conhecer e saber acolher
as suas necessidades, sonhos e aspirações como se nossas fossem.
Precisamos de sermos capazes de nos colocarmos do seu lado,
compreendendo as suas frustrações e os seus justos desejos. A
empatia leva-nos ao gosto do outro com o que tal comporta de um
desejo verdadeiro e operativo do seu bem, da sua realização e
felicidade. Isto tanto na relação pessoal, como na vida das
organizações, na empresa como nos serviços públicos, na escola
como nos centros de saúde, nos partidos políticos como na
governação.
Sobre o cuidado bastará recordar que este é hoje
considerado uma atitude básica que todo o ser humano deve
desenvolver, já que aparece inequivocamente associado à própria
sobrevivência da Humanidade. Assim sendo, tem de fazer parte da
busca e da prática da santidade vivida no quotidiano.
Forbes, Jorge – A psicanálise do homem desbussolado – As
reacções ao futuro e o seu tratamento. (IV Congresso da
Associação Mundial de Psicanálise, 4 de Agosto de
2004). Agradeço a Maria do Céu Tostão esta
referência.