Num mundo desbussolado, que lugar para a santidade?

- Empatia

e Cuidado

Manuela Silva

Outubro 2012

Mother Holding Her Two Boys
- © Julie Nicholls/Corbis (DC) Col: Motif
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A santidade é-nos dada, todos os dias, como possibilidade.

Sophia de Melo Breyner

A santidade é-nos dada, todos os dias, como possibilidade, escreve Sophia de Melo Breyner, num dos seus contos a que sempre recorremos com proveito e imensa satisfação interior. Refiro-me a “Retrato de Mónica”.

Contudo, apesar desta repetida quotidianidade, parece que afastamos, do nosso horizonte de propósitos e referentes de vida, a santidade como caminho de realização pessoal e, mais ainda, como virtude devidamente valorizada no espaço público.

Diria que a santidade é, hoje, uma palavra silenciada: não entra nos telejornais nem, tão pouco, nas nossas conversas pessoais com os familiares e amigos; não consta como proposta explícita dos projectos educativos para os mais novos; não inspira as telenovelas nem os jogos de computador com que crianças e jovens ocupam boa parte do seu tempo; mesmo nos meios de iniciação e formação cristã ocupa um lugar envergonhado.

Qual a razão deste ensurdecedor silêncio?

Por um lado, confundimos santidade com um ideal inatingível para as pessoas comuns, ou mesmo como um qualquer caminho exótico percorrido por algumas personagens do passado, vidas a que talvez reconheçamos terem sido revestidas de alguma heroicidade que até poderão merecer a nossa admiração, mas sem relevância nem pontes para os desafios que devemos enfrentar na nossa vida corrente.

Este tipo de raciocínio afasta-nos – e muito – do Evangelho e da tradição da Igreja, como foi solenemente afirmado pela doutrina do concílio Vaticano II. A comprová-lo duas referências:

Uma citação do Evangelho: Sede santos como o vosso Pai é santo (Mt 5,48).

Todo o capítulo 5 da Constituição Lumen Gentium cujo título é bem elucidativo:
A santidade é a vocação comum dos cristãos (nº 39).

Nada mais claro acerca do lugar primordial da santidade na vida dos cristãos. No primeiro caso, é o próprio Jesus que, sem rodeios, aponta aos discípulos a santidade como paradigma de vida; no segundo caso, a doutrina conciliar afasta liminarmente a ideia de que a santidade esteja reservada a algumas pessoas com condições de vida especiais que as retiram do mundo e do quotidiano da vida comum e afirma que todos, sem excepção, são chamados à santidade.

Em que consiste a santidade?

José Tolentino Mendonça serve-se do texto das bem-aventuranças para dizer, em linguagem de teologia poética: É naquilo que somos e fazemos, no mapa vulgaríssimo de quanto buscamos, na humilde e mesmo monótona geografia que nos situa, na pequena história que dia a dia protagonizamos que podemos ligar o céu à terra. É isso a santidade.

Para os cristãos, a santidade é essa busca incessante de trazer para a nossa vida a Palavra de Deus e a sua revelação em Jesus Cristo, deixando que ela tome corpo, isto é, ganhe concretização e densidade, tanto na vida pessoal e na relação de uns com os outros, como no espaço público, onde se estabelecem as leis e os contractos, onde se alicerçam os fundamentos das instituições e se definem os seus modos de funcionamento, onde se dirimem os conflitos e onde, enfim, se buscam soluções de viver melhor.

Neste tempo e lugar em que habitamos, a busca da santidade no quotidiano da vida pessoal bem como no espaço público merece particular atenção e empenho.

O mundo desbussolado, que conhecemos, precisa de pessoas e de comunidades capazes de apontar alternativas a uma cultura que está manchada pelo egoísmo e pela ganância, precisa de superar uma mundividência que gera frustração, desigualdade, injustiça e, a prazo, só pode gerundiar sociedades permanentemente ameaçadas pelo caos e pela barbárie, onde o próprio ser humano corre o risco de se deixar asfixiar e, ele próprio, perder o norte.[1]

Só o caminho da santidade, que é o caminho do Amor, poderá conduzir à felicidade, pessoal e colectiva, à realização pessoal e ao bem comum e, concomitantemente, promover o indispensável reforço do progresso material e espiritual, da coesão social e da paz.

A santidade é como um vitral de múltiplas cores, ainda que mantenha um conjunto de cores básicas, como a verdade, a humildade, a compaixão, o respeito do outro, o amor ao próximo.

Nos nossos dias e tendo em conta os desafios críticos que conhecemos, a santidade deve incluir, além das virtudes básicas, duas dimensões essenciais: a empatia e o cuidado.

A empatia, nos seus dois sentidos que se completam: uma identificação emocional com o eu do outro e uma compreensão mútua. Precisamos, urgentemente, de valorizar e pôr em prática um sentido empático para com o outro, conhecer e saber acolher as suas necessidades, sonhos e aspirações como se nossas fossem. Precisamos de sermos capazes de nos colocarmos do seu lado, compreendendo as suas frustrações e os seus justos desejos. A empatia leva-nos ao gosto do outro com o que tal comporta de um desejo verdadeiro e operativo do seu bem, da sua realização e felicidade. Isto tanto na relação pessoal, como na vida das organizações, na empresa como nos serviços públicos, na escola como nos centros de saúde, nos partidos políticos como na governação.

Sobre o cuidado bastará recordar que este é hoje considerado uma atitude básica que todo o ser humano deve desenvolver, já que aparece inequivocamente associado à própria sobrevivência da Humanidade. Assim sendo, tem de fazer parte da busca e da prática da santidade vivida no quotidiano.


[1] Forbes, Jorge – A psicanálise do homem desbussolado – As reacções ao futuro e o seu tratamento. (IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, 4 de Agosto de 2004).  Agradeço a Maria do Céu Tostão esta referência.

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