Manuela Silva. Fevereiro 2019
” O Senhor está realmente neste lugar e eu não o sabia! (Gen 28,16) “
Na sua última conferência, realizada em Lisboa em 5 Outubro passado, Luciano Manicardi, prior do Mosteiro de Bose (Itália) lançava esta interrogação: “se até numa colherinha de café o sol se reflete”, devermos perguntar-nos: existem coisas “banais”?
Toda a conferência foi uma interpelação dirigida ao modo como olhamos o nosso quotidiano, nas suas múltiplas vertentes e como o vivemos na relação que temos com as coisas que usamos, as compras que fazemos e as lojas que escolhemos, as tarefas que desempenhamos, as profissões que exercemos, os encontros que temos e as relações que no dia-a-dia vamos tecendo, os espaços que habitamos, os transportes a que recorremos…
Aquilo com que lidamos no nosso quotidiano diz muito de nós, das nossas opções pessoais e do nosso sentido de vida e, simultaneamente, vai deixando, em cada pessoa, marcas existenciais. Assim sendo, não podemos descurar a sua importância, pois, como diz Luciano Manicardi: elas (as “coisas”) são o diálogo ininterrupto que os sentidos estabelecem com o mundo e, através dos quais, o mundo toca a nossa alma. Deste modo, o quotidiano tem, assim, uma valência antropológica mas, também, espiritual.
Nas nossas sociedades e estilo de vida, a quotidianidade corre o risco de ficar esquecida e subestimada, tal é o afã do trabalho, da comunicação, da pressão social, do divertimento e da importância que damos às coisas excepcionais, reais ou virtuais, em detrimento da atenção devida ao viver quotidiano em relação ao qual nos tornamos desatentos, despreocupados e sonâmbulos.
Tomamos o quotidiano como banal, quando o quotidiano é, afinal, o “lugar” em que nós realizamos a nossa humanidade, nos construímos como pessoas, construímos as relações que dão sentido e sabor ao nosso viver, amizades, amores, uma família.(Luciano Manicardi)
Nem as “coisas” que temos por excepcionais escapam à influência do quotidiano. Por exemplo, quantas vezes deparamos com conflitos e até rupturas, familiares profissionais e outras, que nos surpreendem e ferem as quais, vendo bem, tiveram origem remota em pequenas coisas da quotidianidade: escolhas, palavras, atitudes, desatenções, que foram criando o caldo de cultura dessas situações indesejáveis e, não raro, irremediáveis. Lembremos a propósito a narrativa bíblica do dilúvio do tempo de Noé e o comentário de Luciano Manicardi: Aquela geração não é acusada de especiais maldades mas, de não se ter dado conta de nada, de não ter compreendido nada … “comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e construíam (Lc 17,28). Tudo “coisas” do quotidiano que, em si, são boas. Nada têm de censurável, mas eram vividas de modo inconsciente, faltava-lhes o sentido de tal viver. O mesmo nos pode acontecer se não tomamos o quotidiano com a seriedade que ele merece, o que implica atenção, responsabilidade, interiorização e transcendência, em relação a todos os fios das nossas vidas, por mais insignificantes que, à primeira vista, possam parecer.
Para os cristãos o quotidiano é também um lugar de revelação. É no dia-a-dia que Deus nos busca e revela o seu Amor. É na quotidianidade, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, vivida interiormente e em relação com o Criador, que incarnamos a Palavra na nossa singularidade existencial e que, assim, vamos construindo o reino da Justiça, da Verdade, do Amor em sintonia com o evangelho e como resposta amorosa ao projecto de Jesus: Vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (Jo 10,10)
A este propósito, as narrativas que nos chegaram acerca da vida de Jesus de Nazaré são eloquentes, multiplicando exemplos que nos dão a conhecer a atenção e o cuidado que o Mestre dedicava aos pormenores do seu quotidiano: aos alimentos, à faina diária da pesca, ao valor da moeda, à esmola da viúva, às danças das crianças nas praças, à beleza dos lírios dos campos, aos sinais do tempo, … Em cada gesto, em cada situação, sempre transparece a sua comunhão com o Pai e a experiência humana de um quotidiano vivido como lugar de revelação.