Manuela Silva
Maio 2019
O Senhor começou uma história de amor com as pessoas e quer abraçar toda a criação nesta história. A maneira de lutar contra o mal, que nos ameaça e ameaça o mundo todo, só pode residir no nosso ingresso neste amor em última instância. Esta é a verdadeira força contra o mal, já que o poder do mal surge da nossa recusa em amar a Deus. (Bento XVI)
Em Fevereiro passado, o papa emérito Bento XVI publicou num jornal alemão um texto com o título “A Igreja e o escândalo do abuso sexual”, com o propósito de contribuir com a sua reflexão (achegas, como, humildemente lhe chamou!) para a reunião dos presidentes das conferências episcopais convocada pelo papa Francisco para discutir a crise da Fé e da Igreja, uma crise palpável em todo o mundo após as estarrecedoras revelações dos abusos perpetrado por clérigos contra menores.
A magnitude dos casos conhecidos e a sua proliferação entre clérigos e inclusive entre membros da hierarquia da Igreja católica tem levado ao abandono da Igreja por parte de muitos fiéis que se sentem traídos na sua fé e sem confiança nos seus pastores. A opinião pública, por sua vez, encontra nestas fragilidades razões para criticar as instituições eclesiásticas, o seu modo de agir e o poder que detêm na sociedade civil em alguns países e declaram guerra contra a Igreja e os seus fiéis.
Há que reconhecer e enfrentar a extensão e a profundidade da actual crise da Fé e da Igreja, visível em todo o mundo, ainda que com manifestações distintas consoante os contextos culturais e sociopolíticos em que ocorrem. Assim sendo, para Bento XVI, é necessário e urgente procurar um novo começo, afim-de tornar a Igreja verdadeiramente credível como uma luz entre os povos e como uma força activa contra os poderes da destruição.
O texto agora publicado tem esse propósito e está dividido em três partes: na primeira, discorre sobre o contexto societário mais amplo em que se situa esta problemática sem o qual não é possível entender as suas respectivas causas profundas; na segunda parte, analisa-se as implicações da cultura dominante na formação e na vida dos clérigos; na terceira parte, Bento XVI apresenta as suas perspectivas para a necessária e urgente renovação da Igreja.
Não cabe na natureza deste escrito desenvolver – e, menos ainda, comentar – este texto, mas tão só recomendar a sua leitura na íntegra, contribuindo assim para colmatar o défice da sua fraca divulgação entre os fiéis e ausência de debate nas suas comunidades. Por outro lado, move-nos o desejo de resistir às vozes conservadores dentro da Igreja que vêem nas palavras de Bento XVI a acentuação dos perigos de uma igreja dividida e incentivo para o seu empenho em combater o esforço renovador do Papa Francisco.
Reconhecido o alcance e a extensão da crise contemporânea da fé e da Igreja, não podemos deixar de nos interrogar acerca do que nos cabe fazer para sermos fiéis ao evangelho e à missão de o anunciar e testemunhar com a nossa própria vida.
A este propósito, retomo o pensamento de Bento XVI neste seu escrito.
Não se trata de inventar uma nova Igreja, mas tentar entender, de novo e dentro de nós mesmos, o que o Senhor quer e quis de nós, reconhecendo que o conteúdo da fé, à luz das escrituras, se resume na aceitação de que o Senhor começou uma história de amor com as pessoas e quer abraçar toda a criação nesta história.
É à luz desta fé no amor de Deus que podemos encontrar os caminhos certos para lutar contra o mal que nos ameaça e ameaça o nosso mundo.
Como lembra Bento XVI: A maneira de lutar contra o mal, que nos ameaça e ameaça o mundo todo, só pode residir no nosso ingresso neste amor em última instância. Esta é a verdadeira força contra o mal, já que o poder do mal surge da nossa recusa em amar a Deus. Quem se entrega ao amor de Deus é redimido. A nossa realidade de não-redimidos é consequência de nossa incapacidade de amar a Deus. Aprender a amar a Deus é, portanto, o caminho da redenção humana.
Os cristãos tenderão a ser, no futuro próximo, um pequeno resto, como já sucede em algumas regiões do mundo e, aliás, já tem ocorrido ao longo dos tempos. A sua força e sentido de vida carecem, pois, de alicerces sólidos que resistam aos abalos telúricos de um mundo sem Deus, vazio de padrões de bem e de mal, onde a verdade não conta e não existe e onde impera o individualismo, o hedonismo e a lei do mais forte em detrimento da fraternidade, da solidariedade, do bem comum.
Se queremos realmente superar a presente crise, designadamente as convulsões morais que lhe subjazem, temos que aprender a reconhecer Deus como a base de nossa vida. Em vez de deixá-lo de lado como se fosse uma frase ineficaz. (…) Ele fala connosco, vive connosco, sofre connosco e assumiu a morte por nós. Falamos sobre isso em detalhes em teologia, com palavras e pensamentos aprendidos, mas é precisamente assim que corremos o risco de nos tornarmos professores da fé, em vez de sermos renovados e transformados em mestres pela fé.
A ideia que fazemos da Igreja não pode reduzir-se a algo externo às nossas vidas, uma mera instituição e lugar de poder. Para cada baptisado, a Igreja no seu todo há-de ser percepcionada como corrente de vida que nos move interiormente e sustenta na fé em Jesus Cristo e no seu projecto de salvação. Precisamos de uma igreja que fomente comunidades de fé que tornem visível o testemunho do primado do amor nas nossas relações interpessoais bem como no nosso modo e estilo de vida e de cuidado pela nossa casa comum.
A este propósito, escreve Bento XVI: A fé é uma travessia e uma forma de vida. Na Igreja antiga, o catecumenato foi criado como um habitat no qual os aspectos distintos e frescos daquele modo de viver a vida cristã eram ao mesmo tempo praticados e protegidos, contra uma cultura cada vez mais desmoralizada. Acredito que mesmo hoje, algo como estas comunidades de catecumenato sejam necessárias para que a vida cristã possa se afirmar da maneira que lhe é própria.
Poderá a Fundação Betânia, que nos seus fundamentos comunga destas preocupações, ser mais proactiva na construção destes espaços de fé como travessia e forma de vida, que nos faz felizes na nossa fé?