Amizade - a surpresa que permanece
“Não sei se, com excepção da sabedoria, os deuses outorgaram ao homem algo melhor que a amizade.” De Amicicia. Marco T. Cícero, Roma. 106 AC-43 AC
Num tempo em que as comunidades se estabelecem preferencialmente em redes virtuais, em que muita gente experimenta relacionamentos de geometria variável, em que a comunicação é vertiginosa, proveniente de entidades com interesses pouco transparentes, muitas vezes baseada em informações manipuladas, onde o conhecimento se torna difícil de processar e somos constantemente solicitados à mudança de paradigma… Quais são as nossas âncoras? O que permanece?
Temos momentos excepcionais em que fazemos opções que dão sabor e sentido à vida. Contudo, na maior parte dos nossos dias, a rotina diária não nos leva a lado nenhum. No final o que permanece, aquilo a que podemos apegar-nos nas horas difíceis e o que consentimos a nós mesmos com alegria são as relações que estabelecemos com outras pessoas.
A nossa realidade tão frágil é feita de alegrias, paixões, lealdades, perdas, feridas que de algum modo conseguimos curar e momentos de reconciliação. Temos ainda capacidade para estar ligados a outros seres humanos, ainda que o espaço e o tempo nos separem. Assim vamos construindo o tecido humano que mantém a vida de homens e mulheres unida.
As relações de amizade são a surpresa do que permanece na vertigem da vida quotidiana e, para o serem, necessitam de lealdade, dedicação e cuidado. Não são um processo garantido; não são geradas no instante apaixonado do momento. Obrigam-nos a colocar em jogo o melhor de nós mesmos e dos nossos afetos. São algo que sempre nos surpreende, que escapa à certeza do nosso próprio compromisso. Investimos nas relações de amizade para cuidar, cultivar e preservar quer os amigos, quer a nós próprios e até a relação que se estabelece.
Sem explicar por que nem como, os amigos “estão lá”. São um porto de abrigo e sabemos que sempre podemos contar com eles. Estão prontos para nos receber com todas as nossas fraquezas, em todas as nossas fugas e em todas as incapacidades de viver de acordo com a nossa fragilidade. São o abraço, o silêncio, a mão aberta e são o tesouro que dá um sabor à vida e a torna habitável mesmo nas horas de aflição.
Os amigos vivem na constante surpresa de sentir-se hóspedes, acolhidos na vida de outras pessoas, na expectativa de que eles sejam capazes de ir além de todos os limites da paciência. São o que permanecem firmes, mesmo quando tudo ao nosso redor muda e se transforma a uma velocidade estonteante.
Na amizade ninguém é o dono, o autor, ou ator principal. Frágil e bela, esta âncora está para além do dever, é uma relação de gratuidade e respeito, de cuidado e alegria com as pessoas que surgem na nossa vida.
A Amizade é um presente, uma bênção surpreendente de Deus que nos convida a procurá-lo em outro lugar, ou nos não-lugares das nossas sociedades contemporâneas. Secretamente desejada, esta lealdade dos laços que nos mantêm unidos quase por magia, despida do poder, de todo poder, é uma bênção nos dias que correm.
Terá sido assim, em Betânia, entre Jesus e os seus amigos: Lázaro, Marta e Maria. Esse grupo de amigos de Betânia é inspirador!