Ano A 04 domingo do tempo comum
IV domingo do Tempo Comum
Autor: Luciano Manicardi
IV Domingo do Tempo Comum (29 jan 2017)
Autor: Luciano Manicardi
Sof 2,3.3,12-13; Sl 145,7.8-9a.9bc-10; 1Cor 1,26-31; Mt 5,1-12
A predilecção de Deus é pelos pobres e pelos humildes (1.ª leitura), pelos pobres em espírito (evangelho). A comunidade cristã de Corinto – diz a 2.ª leitura, que, mesmo prosseguindo a lectio semicontínua da 1.ª Carta aos Coríntios, retoma de algum modo a mensagem unitária das outras duas leituras – é formada por pessoas irrelevantes do ponto de vista social e económico: Deus, de facto, escolhe o que é fraco, ignóbil e desprezado para confundir as grandezas mundanas.
A palavra profética, que transmite o olhar de Deus sobre o homem, revela que o autêntico povo de Deus é um resto, um resto formado por quem é justo, fiel, manso, não orgulhosamente auto-suficiente, mas consciente da sua dependência de Deus e do seu status de “procurante” de Deus e da sua justiça (1.ª leitura); o olhar de Jesus sobre a multidão revela que o verdadeiro discípulo é designado não por uma pertença exterior, mas por uma realidade íntima feita de mansidão, pureza de coração, pobreza em espírito, misericórdia (evangelho).
Entrar no espírito das bem-aventuranças significa entrar no olhar de Deus sobre a realidade humana e descobrir que, em Cristo, mesmo as situações de aflição ou perseguição podem ser vividas como bem-aventurança: a bem-aventurança de quem sabe ter verdadeiramente alguma coisa em comum com Jesus, o bem-aventurado por excelência porque manso, misericordioso, pobre em espírito. A bem-aventurança oferecida é a alegria íntima da comunhão com o Senhor, experimentada em situações concretas em que também Jesus se encontrou e, sobretudo, que viveu como ocasião de amor e de dedicação. É a alegria do servo que se encontra onde também o seu Senhor esteve (cf. Jo 12,26). É a alegria de quem participa no sentir e no querer de Cristo (cf. Fl 2,5).
Como entender a bem-aventurança dos misericordiosos (Mt 5,7)? É a bem-aventurança dos que crêem na humanidade e na dignidade do homem sempre, mesmo quando o próprio homem, por sua culpa ou por desgraça, a perdeu ou opacificou. A misericórdia acredita obstinadamente na humanidade do culpado e restaura-a com o perdão. A misericórdia é o amor incondicional, que ama o que não é amável ou que se tornou desprezível; é memória e prática da dignidade humana perante quem a ofuscou. Ela crê na dignidade humana mesmo do criminoso, do pedófilo, do proscrito, do homem reduzido a nada, do homem disforme em comparação com a forma humana normal e comummente aceite, como o Servo de que fala Isaías 53, o “sem dignidade” por excelência. A misericórdia respeita o homem na sua nulidade, na sua miséria extrema, quando (já) não é útil ou interessante pelas condições de dependência ou de privação que o afligem. A misericórdia recusa-se a reduzir o homem às culpas, ainda que monstruosas, de que ele pode estar manchado. E continua a confessar a humanidade daquele que perdeu razão e memória, palavra e vontade.
E a bem-aventurança dos mansos (Mt 5,5)? A mansidão é a arte de domar a sua própria força, demonstrando ser mais forte que a sua força. Instrumento da mansidão é a palavra e o seu método é o diálogo. Se Jesus é a mansidão feita pessoa (“Eu sou manso e humilde de coração”: Mt 11,29), é-o enquanto palavra feita carne, palavra interposta por Deus entre si e os humanos, não para impor-lhes alguma coisa, mas para os convidar à relação, a entrar em diálogo com Ele. Paulo VI expressou bem o facto de que a mansidão é inerente ao diálogo: “Característica própria do diálogo é a mansidão: o diálogo não é orgulhoso, não é pungente, não é ofensivo […]; é pacífico, evita os modos violentos, é paciente e generoso” (Ecclesiam suam 47). É a mansidão que protege a palavra como factor de comunicação e de relação e a preserva do risco de se tornar arma. Assim, a bem-aventurança dos mansos torna-se também juízo em relação ao que não pratica a mansidão e ao que faz da palavra um instrumento para dominar, para silenciar, para impor, para mistificar, para abusar, para iludir, para enganar, para adular.
Cada bem-aventurança tem o seu lado negativo e implica um juízo e um apelo à conversão em relação a quem não é misericordioso, nem manso, nem pobre em espírito, a quem persegue e calunia, a quem provoca aflições, semeia guerra e injustiça.
© – Luciano Manicardi