Ano A 06 domingo do tempo comum
VI domingo do Tempo Comum
Autor: Luciano Manicardi
VI domingo do tempo comum
Sir 15,15-20; Sl 118,1-2.4-5.17-18.33-34; 1Cor 2,6-10; Mt 5,17-37
A 1.ª leitura fala do mandamento como uma oferta de Deus ao homem, não como uma imposição. Uma oferta que suscita e solicita a liberdade do homem ao mesmo tempo que lhe revela uma sua potencialidade: “Se quiseres, podes observar os mandamentos” (Sir 15,15). O aprofundamento e a radicalização do sentido dos mandamentos que Jesus fez é também aprofundamento e radicalização da liberdade humana, que encontra no coração o seu centro invisível e nas relações com os outros o lugar para se manifestar como responsabilidade libertadora (evangelho).
As palavras de Jesus que asseguram que ele não veio revogar, mas completar a Torah impedem-nos de ler as sucessivas afirmações de Jesus apenas como antíteses, porque a segunda parte da frase (introduzida por: “mas eu digo-vos”) revela o sentido já incluído na primeira (“Ouvistes o que foi dito”). Além disso, Jesus não se opõe à Escritura, mas a interpretações e explicações da Escritura dadas pelos escribas: “O povo não lia um texto, mas escutava a palavra proclamada nas sinagogas e interpretada nas escolas” (Alberto Mello). Portanto, o texto não permite qualquer posição substitucionista: Jesus não revoga a Torah, nem a substitui, mas aplica-lhe uma hermenêutica radical.
Jesus radicaliza o mandamento bíblico “não matar” afirmando que já há violência homicida em chamar a alguém “estúpido” ou “louco” (Mt 5,21-22). Por trás destas palavras de Jesus, percebe-se o problema da cólera. Cólera que, sendo uma emoção, só por si não é boa nem má. O problema é o uso que lhe é dado e o modo como é gerida. Importa reconhecer os sinais precursores da cólera (contracção dos músculos, afluxo de sangue ao rosto, aceleração do ritmo cardíaco, dilatação dos olhos, bloqueio da respiração, contracções do diafragma, humedecimento das palmas das mãos) e exprimi-la de modo não violento, isto é, na 1.ª pessoa (“Estou muito zangado contigo”, “Fico doente com o teu comportamento”) de preferência à 2.ª (“És louco”, “Não prestas para nada”, “Não percebes nada”), que já é homicida. A cólera é reveladora e ajuda-nos a conhecermo-nos: “Na nossa doutrina não se pergunta à alma crente se está irada, mas porquê” (Agostinho, De civitate Dei IX,5). A cólera não expressa pode ser mais mortífera do que a expressa: “Em certos casos, a ira impõe à alma agitada que não fale e, quanto menos se exprime para fora, tanto mais queima por dentro […] Com frequência a ira guardada no íntimo com o silêncio ferve com mais veemência e, ainda que não fale, forma vozes violentas” (Gregório Magno, Moralia V,82). A ira que o próprio Jesus experimentou (cf. Mc 3,5) e exprimiu (cf. Mc 10,14; Jo 2,15) mostra pois que há também uma santa cólera que traduz a indignação divina perante as injustiças e os pecados dos homens.
Os vv. 23-24 atestam o primado da relação sobre o rito: o rito pode ser interrompido para se procurar e efectuar a reconciliação com o irmão. As relações humanas são o espaço do verdadeiro culto a Deus. Por isso, a reconciliação e a paz com o irmão são elementos essenciais para a autêntica celebração eucarística. É melhor não participar na Eucaristia do que participar contradizendo na prática o que se celebra com o rito: “Quem está em conflito com o seu amigo, não se reúna convosco até que se tenha reconciliado, de modo que não seja profanado o vosso sacrifício” (Didaché XIV,2). Na Didascalia Apostolorum ordena-se: “Ó bispos, para que as vossas preces e os vossos sacrifícios sejam bem acolhidos, quando vos encontrais na igreja para rezar, o diácono deve dizer em voz alta: ‘Há alguém que esteja em conflito com o seu próximo?’, de modo que, se houver pessoas que estejam em conflito entre elas, possas convencê-las a fazerem as pazes entre si” (II,54,1).
A advertência de Jesus sobre o juramento (vv. 33-37) é um convite à responsabilidade da palavra. Jesus faz uma dessacralização e pede ao crente uma adesão laica à palavra proferida, sem trazer ao caso elementos sagrados como testemunhas da veracidade do que disse. O falar do homem deve ser de tal modo verdadeiro que não precise de juramentos.
© – Luciano Manicardi