Ano A 2 de Novembro – Fiéis Defuntos
2 de Novembro
– Fiéis Defuntos
Autor: Luciano Manicardi
2 de Novembro – Fiéis Defuntos
Autor: Luciano Manicardi
Jb 19,1.23-27; Sl 26,1.4.7.-8b.-9a.13-14; Rm 5,5-11; Jo 6,37-40
(A 2.ª leitura e o evangelho não são os mesmos que na liturgia portuguesa)
A esperança e a invocação de Job de uma comunhão com Deus depois da morte (1.ª leitura) encontram eco na promessa de Jesus de ressuscitar aqueles que o Pai lhe confiou (evangelho). A própria morte de Jesus, vivificada pelo amor de Deus, foi factor de reconciliação, de vitória sobre o pecado, de vitória sobre a morte (2.ª leitura).
“Contra todas as outras coisas é possível conseguir uma segurança, mas por causa da morte, nós, homens, habitamos uma cidade sem muros.” A morte, recorda Epicuro, põe um selo de precariedade e de insegurança sobre a vida humana. E a insegurança produz o medo, e o medo escraviza. Os homens, recorda a carta aos Hebreus, são escravos toda a vida por causa do medo da morte (cf. Heb 2,15). E, sentindo-nos cidade sem muros, procuramos construir protecções e defesas que, conquanto queiramos preservar-nos da morte, na realidade, nos afastam da vida. E que grande parte da nossa vida passa neste engano. As palavras de Jesus no evangelho não convidam a atitudes defensivas e de medo, mas à fé, a confiar-se ao Senhor, a crer nele. “Quem crê no Filho tem a vida eterna” (Jo, 6,40); e ainda: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11,25); “Quem crê tem a vida eterna” (Jo 6,47). A fé em Cristo é o lugar da ressurreição.
Quando a nossa pessoa se decide a uma confiança no Senhor sem reservas, sem nada a defender, sem muros ou baluartes, então ela habita o espaço da ressurreição e conhece o amor e a esperança, a audácia e a liberdade que o próprio Jesus viveu. E Jesus viveu as suas relações com os outros sob o signo do dom do Pai e da sua confiança pessoal no Pai, a qual se tornou a sua entrega aos irmãos: os outros são o que o Pai lhe deu (cf. Jo 6,37.39) e pelo qual assume a responsabilidade até ao fim (cf. Jo 13,1). Confiando-se ao Pai, ele não afasta de si quem se aproxima dele, não rejeita, não se defende dos outros, mas acolhe. Vivendo o primado da fé no Pai que o enviou, Jesus vive não para fazer a sua vontade, mas a vontade do Pai, que é a vontade de vida plena para todo o homem. Uma vida assim vivida é uma vida que integra a morte e a transforma em amor, que é força de ressurreição. Se a fé é o lugar da ressurreição, o amor é a força da ressurreição.
Não é apenas o medo da morte que nos leva a defendermo-nos, mas também, e sobretudo, o medo da vida, da perda que o viver comporta, dos confrontos impiedosos com os outros, que nos levam a fecharmo-nos em nós e a viver no ressentimento, no receio de que os outros possam tirar-nos alguma coisa. Ter fé em Jesus Cristo significa fazer do amor o lugar em que a morte é posta ao serviço da vida, e sobretudo da vida dos outros. Em tudo isto vêm em nossa ajuda as experiências de morte que a vida nos obriga a fazer. A experiência do luto representa a derrota do narcisismo e revela a vaidade de perseguir a própria vontade, de construir barreiras para nos defenderem da morte que a vida poderia trazer. E pode-nos abrir, com o seu mudo ensinamento, para a única coisa necessária e vital: acreditar no amor, viver o amor, fazer da vida um acto de amor.
A lógica da ressurreição, expressa nos termos não perder nada nem ninguém de quantos o Pai deu ao Filho (cf. Jo 6,39), é a lógica do amor. Aquela lógica que muitas vezes não é a nossa, porque nós sabemos perder o outro, as relações, os dons recebidos.
Uma comunidade cristã é feita também de uma memória partilhada e as pessoas que morreram e que habitam a memória de cada um, e que cada um apreende objectivamente na fé no Cristo morto e ressuscitado e leva para a Eucaristia, pedem que se tornem cada vez mais harmoniosas as relações entre os membros do corpo para que seja o agape a linfa vital que percorre e unifica o corpo comunitário e seja a gratidão o leito em que ela corre. Então talvez também possa acontecer-nos morrer na gratidão e a bendizer, dando substância cristã à bela e antiga imagem formulada pelo imperador filósofo: “A azeitona madura cai bendizendo a terra que lhe deu vida e agradecendo à árvore que a fez crescer” (Marco Aurélio).
© – Luciano Manicardi