Ano A 20 domingo tempo comum
XX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
XX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
Is 56,1.6-7; Sl 66,2-3.5.6.8; Rm 11,13-15.29-32; Mt 15,21-28
A integração dos pagãos no povo de Deus: este o tema que unifica o texto de Isaías e a passagem do evangelho. Em particular, tanto a 1.ª leitura como o evangelho atestam a capacidade de fé do outro, do não pertencente ao povo santo. Isaías fala de estrangeiros que “aderiram ao Senhor para servi-lo e amá-lo”, observando o sábado e mantendo-se firmes na sua aliança; no evangelho, Jesus testemunha a grande fé da mulher cananeia que vence as resistências dele a satisfazer o seu pedido.
No encontro entre o judeu Jesus e a mulher cananeia reaparece por um momento a antiga inimizade entre o povo de Israel e as populações de Canaã, os povos idólatras que habitavam a terra onde Israel se instalou. A identidade rigorosamente judaica de Jesus, o seu forte sentido de pertença ao povo eleito, constitui um obstáculo ao encontro com a mulher, que esbarra com o silêncio de Jesus (cf. Mt 15,23), com a resposta seca dirigida aos discípulos que se fazem intercessores interessados pela mulher (“Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”: Mt 15,24), com a dura resposta dirigida a ela pessoalmente (cf. Mt 15,26). E, no entanto, Jesus é capaz de viver a sua identidade não de modo fechado e excludente. O seu “orgulho judeu” leva-o a encontrar o estrangeiro a partir de uma identidade sólida, mas também aberta, não imutável, não endurecida com nacionalismos ou xenofobias. E, assim, Jesus ensina a não fazer da identidade um ídolo.
Constitutiva da identidade de Jesus é a escuta do sofrimento do outro. Jesus deixa-se interpelar e mudar pelo sofrimento que move a mulher: a sua filha está gravemente doente. Do mesmo modo, Jesus acolhe o centurião pagão que vai ter com ele com o sofrimento do seu servo (Mt 8,6: “O meu servo jaz em casa paralisado e sofre terrivelmente”): a universal experiência do sofrimento remete para aquela fragilidade do humano que Jesus escuta e que o leva a fazer-se próximo do outro, mesmo que estrangeiro. E é elemento constitutivo de toda a identidade que queira ser humana, mais que confessional ou nacional.
Há um território habitado por todo o homem, o sofrimento, que ultrapassa qualquer pátria e qualquer fronteira e nos torna todos “conterrâneos”: o meu ser habitante do território do sofrimento (território que normalmente isola e separa) torna-se ocasião de relação e de justiça perante o estrangeiro e o seu sofrimento.
Os motivos que deixam Jesus tão relutante em aceder ao pedido da mulher são de ordem teológica: a história da salvação implica que ele cumpra a sua missão para com Israel, não os pagãos. Mas a escuta do sofrimento do outro emenda esta visão teológica, correcta mas abstracta, da história da salvação para uma práxis mais concreta e humana da salvação das histórias. E sobretudo das histórias pessoais e familiares, sempre precárias e sempre atravessadas por dramas e sofrimentos. Inserindo-se na visão da história da salvação avançada por Jesus (os filhos de Israel distintos dos “cães”, os não judeus), a mulher introduz a metáfora espacial da casa e da mesa em que “os cães domésticos” podem chegar perto dos filhos e se alimentam das migalhas dos filhos, legítimos comensais. Os cães e os filhos, os não judeus e os judeus têm uma única casa e uma única mesa. A observação genial da mulher converte e preenche a visão de Jesus: na única casa e em redor de uma única mesa há a possibilidade de uma contemporaneidade de refeição entre filhos de Israel e estrangeiros, contemporaneidade em que o primado de Israel (os filhos) é reconhecido e redimensionado ao mesmo tempo.
Jesus reconhece a fé do outro e confia nela: “Grande é a tua fé, seja como desejas” (Mt 15,28). E confiança é o aspecto humano da fé. Criar um clima de confiança na Igreja é essencial para que as pessoas possam vencer o medo e viver a fé verdadeiramente, numa casa comum em que já ninguém é estrangeiro e hóspede, mas todos são familiares de Deus (cf. Ef 2,19). De resto, na comunidade cristã “já não há nem judeus nem gregos […] mas todos são um em Jesus Cristo” (cf. Gl 3,28).
© – Luciano Manicardi