Ano A 30 domingo tempo comum
XXX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
XXX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
Ex 22,20-26; Sl 17,2-3a.3bc-4.37.51ab; 1Ts 1,5c-10; Mt 22,34-40
A 1.ª leitura apresenta algumas leis extraídas do mais antigo corpus legislativo da Torah (o códice da aliança); no evangelho, Jesus, interrogado sobre qual era o maior mandamento constante na Torah, responde citando o mandamento de amar a Deus com a totalidade do seu próprio ser (cf. Dt 6,5; Mt 22,37-38) e juntando-lhe, como segundo e semelhante, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo (cf. Lv 19,18; Mt 22,39). A Torah, na boca de Jesus e vivida por Jesus, é Evangelho.
As leis e os preceitos apresentados no Antigo Testamento, frequentemente ignorados ou mal conhecidos pelos cristãos, são textos de riqueza perene (como “perene” é o valor do Antigo Testamento para os cristãos: Dei verbum 14) e contêm muitas vezes um importante ensinamento que tende para a humanização do homem. A lei que prescreve ao credor que restitua ao pobre “ao pôr do Sol” a capa penhorada é justificada com uma afirmação que exprime a compaixão pelo sofredor e com uma pergunta que pretende despertar a humanidade do credor para com o pobre, que é um ser humano muito antes e muito mais do que um devedor: “Se tomas como penhor a capa do teu próximo, devolver-lha-ás ao pôr do Sol, porque é a sua única cobertura, é a capa para a sua pele, como poderia cobrir-se para dormir?” (Ex 22,25-26). Aqui a lei afirma que a vida de um homem coloca limites ao que se tem o direito de exigir dele.
A lei que proíbe oprimir o imigrante e explorá-lo é motivada implicando o destinatário da lei: “porque fostes imigrantes em terras do Egipto” (Ex 22,20). Esta lei pede um trabalho interior, pede para se fazer memória dos sofrimentos padecidos pelos pais dos destinatários da lei, quando aqueles se encontravam a viver e a trabalhar como estrangeiros em terras do Egipto. A memória tornada lei pode inspirar uma relação humana com quem é hoje imigrante no nosso país.
A página do evangelho põe em estreita relação a Escritura e o amor. A Escritura que pede que se ame a Deus com todo o seu ser e ao próximo como a si mesmo concretiza-se no amor efectivo e concreto: a prática do amor é cumprimento da Escritura, é exegese existencial. Um apotegma dos Padres do deserto narra que abba Serapião, encontrando um dia um pobre inteiriçado de frio, se despiu para o cobrir com a sua própria veste e que, encontrando um homem que era conduzido à prisão por dívidas, tinha vendido o seu evangelho para pagar a dívida e livrá-lo da prisão. De regresso à sua cela, despido e sem o evangelho, a quem lhe pergunta “onde está o teu evangelho?”, responde: “Vendi aquilo que me dizia: ‘Vende o que possuis e dá-o aos pobres.’” O mandamento torna-se graça, a página torna-se vida, o “está escrito” torna-se relação humana.
O mandamento de amar o próximo como a si mesmo significa também que, amando o próximo, me amo verdadeiramente a mim próprio. O amor pelo outro concreto, com um nome, um rosto, um corpo, uma história, converte-me à realidade e leva-me a sair de mim, a ser verdadeiramente eu próprio no sair de mim para encontrar o outro. A nossa verdade é pessoal e relacional.
Amor aos outros e amor a si próprio são muitas vezes contrapostos como o que é virtuoso e o que é pecaminoso. Na realidade, amar os outros como a si próprio implica a capacidade de desenvolver e sustentar um são amor por si. “Se um indivíduo é capaz de amar de modo produtivo, ama-se também a si próprio; se só consegue amar os outros, não pode amar completamente” (Erich Fromm). Há o risco de um altruísmo neurótico, que leva a querer amar os outros desprezando-se a si mesmo e considerando indigno do cristão o amor a si próprio: mas, aos olhos de Deus, eu também sou “um outro”, sou um ser humano amado pessoalmente por Deus, e não tenho nenhum direito de desprezar o que o próprio Deus ama.
A semelhança (cf. Mt 22,39) dos mandamentos de amar a Deus e de amar o próximo é igualmente a semelhança do amor por Deus e pelo próximo. Temos um só modo de amar. E o amor ao próximo é critério de autenticação do nosso amor a Deus: “Quem não ama o seu irmão que vê não pode amar a Deus, que não vê” (1Jo 4,20).
© – Luciano Manicardi