Cantar Aleluia em Pandemia
autor: Manuel António Ribeiro. março. 2021
Celebramos este ano a Páscoa, após um ano que virou as nossas vidas do avesso. A Covid 19 vem mostrar como são enganadores estes impulsos narcísicos cegamente sobredimensionados. Como nos lembra a encíclica Fratelli Tutti, esta tempestade «desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças» (nº32). Estávamos a viver de uma ilusão associada a padrões de consumo nunca experimentado pelas gerações passadas, esquecendo que esse enganoso conforto ia pondo em causa valores fundamentais, como os da sã convivência social, da solidariedade e do respeito pela Natureza. A competitividade desenfreada e o inebriamento da euforia do lucro a qualquer preço sacrificam a fraternidade e a própria sustentabilidade do nosso planeta. Temos vindo a estragar a bondade do mundo que nos foi confiado, fazendo com que ele não corresponda ao projeto do Criador, que é promessa de vida, festivamente celebrada nesta Páscoa.
Atingidos pelo de isolamento e pela incerteza, somos dominados pelo medo. As presentes inquietações são de tal ordem, que podemos perguntar-nos se a alegria anunciada na Páscoa não passa de uma ilusão ou de uma fuga à realidade. Diante do horror insuportável das consequências da pandemia, é difícil acreditar que Deus recusa a legitimação do sofrimento e da morte. Todavia, depois de o início da Quaresma nos ter lembrado que não somos senão poeira e cinza, agora a Páscoa anuncia-nos que esta cinza pode tornar-se braseiro a incendiar os nossos corações. A torrente de vida de Cristo ressuscitado vem banhar a nossa sede de uma alegria profunda, perfeita e durável, capaz de dar sentido e sabor à existência, e isso só pode ser garantido não por um amor frágil, como é todo o amor humano, mas pela incandescência de um amor divino. Precisamos muito desta fonte de confiança serena, quando os nossos passos se tornam titubeantes e o nosso coração se torna pesado. Como sublinhou o Papa no segundo domingo da Quaresma, “o Senhor ressuscitou e não permite que as trevas tenham a última palavra”. Nas provações, a estabilidade da nossa confiança vacila, mas a luz que brilhou naquela ditosa madrugada estimula a deixar-nos deslumbrar pela mesma experiência pascal que fez Maria Madalena correr de junto do túmulo vazio para dar a boa notícia aos discípulos desalentados. Foi ela a primeira missionária, a «apóstola dos apóstolos», a anunciar que a nossa vida não está confinada às fronteiras da morte.
Escreveu recentemente o cardeal Tolentino Mendonça que a pandemia, ao mesmo tempo que devolve a consciência do limite, “impele a refletir criticamente” sobre formas atuais de habitar o mundo e estimula-nos a “sondar novos modos”. É o que o Papa Francisco vem pedindo insistentemente, ao propor uma “cultura de misericórdia” que combata a indiferença e a desconfiança entre seres humanos.
Tornou-se difícil encarar o futuro com esta confiança serena, assim como não é fácil ver na luz pascal a fonte da nossa transfiguração. Confinados às paredes das nossas casas, assemelhamo-nos aos discípulos que estavam fechados no cenáculo, dominados pelo medo, mas foi a esses medrosos que Cristo apareceu ressuscitado e isso mudou completamente as suas vidas. Na já referida alocução, o Papa Francisco comparou a fé a uma luz que “ilumina em profundidade o mistério da vida”, convidando os cristãos a “acender pequenas luzes no coração das pessoas, ser pequenas lâmpadas do Evangelho que trazem um pouco de amor e esperança». Esperemos que o brilho da manhã de Páscoa possa derramar fragmentos de luz divina sobre as nossas obscuridades, para que os nossos olhares sombrios se deixem transfigurar por essa incandescência, como aconteceu aos dois caminhantes de Emaús.
A nuvem negra da terrível pandemia que tem semeado tantas mortes e tanto sofrimento, leva-nos a celebrar este ano a Páscoa com uma alegria mais contida. É uma alegria que se funde com o escuro da dor, mas não será uma alegria que se esfuma em fogo-de-artifício.