Manuela Silva
Dezembro 2017
A encíclica Laudato Si’ é, talvez, o primeiro ato de um apelo a uma nova civilização. (Edgar Morin)
Só quem aceita – ou escolhe – passar pela vida em permanente condição sub-humana de sonambolismo e indiferença perante o que acontece à sua volta e no mundo, não dá conta dos múltiplos desafios ecológicos, económicos, sociais e de sobrevivência como espécie com que a Humanidade está confrontada neste primeiro quartel do século XXI; uma situação com tendência a que os mesmos venham a ampliar-se, muito perigosamente, no espaço de uma geração apenas.
Neste mundo em que interagem e, por essa via, se amplificam processos de profundas alterações (demografia, tecnologia, globalização, clima, biodiversidade, desertificação, calamidades e disrupções várias no modo de produzir e de conviver, etc.) e se multiplicam as suas inegáveis consequências negativas para a vida do Planeta e de quantos o habitam, incluindo o sentido da própria vida, pode a Humanidade ter esperança no futuro e aspirar a uma civilização de bem-viver, de sabedoria partilhada, de convivialidade e de paz, de ecologia integral?
Antecipo a minha resposta dizendo que cultivo uma visão optimista que me leva a reconhecer que mesmo o improvável é possível.
Constato que existem sinais de esperança que importa desocultar, o primeiro dos quais é a tomada de consciência colectiva, cada vez mais aprofundada e alargada, de que o Planeta e a Humanidade estão em risco, mas que, paulatinamente, se vai interiorizando a convicção de que importa arrepiar caminho no que se refere a um estilo de vida consumista e predador, a um modo de produção guiado em exclusivo pelo lucro, a modelos de organização social, económica e política geradores de grandes desigualdades e de exclusões múltiplas que, a termo, conduzem a conflitos e guerras.
Por outro lado, vale a pena dar relevo às iniciativas positivas que surgem em múltiplos domínios da vida colectiva, designadamente nos países do mundo ocidental, com destaque para a economia social e solidária, o desenvolvimento local participado, a agroecologia, o conhecimento de acesso livre e partilhado, as associações que fomentam a convivialidade e a solidariedade, o empenho das igrejas em favor de uma ecologia integral, etc.. Também se multiplicam os empreendimentos que defendem e promovem o desenvolvimento humano sustentável. São realidades que devemos conhecer, valorizar, acarinhar e divulgar como caminho de resistência ao poder invasor de uma tecnologização disrumptiva e de uma economia globalizada num mercado sem regras.
Esta efervescència de novas alternativas evidencia, a meu ver, o despertar de uma nova mundividência e o alvorecer de uma civilização pós-moderna, capaz de incorporar o conhecimento, a tecnologia e a abundância de bens materiais na construção de uma ecologia integral, ou seja impulsionadora do bem-viver, pessoal e colectivo, bem como de formas justas de relacionamento entre os seres humanos e destes com as demais criaturas e com o Planeta.
Eu acredito que há razões para ter esperança, embora saiba que a esperança não se confunde com certeza; é, tão só, uma porta entreaberta, que, acompanhada das suas duas irmãs, a fé e a caridade, na bela imagem de Charles Péguy, nos permite caminhar, sem excessivos temores, em direcção ao futuro. A esperança não é um salvo conduto que livre da justa preocupação face ao futuro, mas leva a que, mesmo em situação-limite, se admita que o caminho em direcção ao abismo pode ser travado.
Edgar Morin, um dos homens mais lúcidos do nosso tempo, baseando-se na sua longa experiência de vida de quase cem anos, tem esta frase lapidar: Eu pessoalmente acredito nas possibilidades do improvável. (…) Quando considero essa história de vida e de todo o universo, eu vejo aí o conflito permanente e inextinguível entre o que pode ser chamado de Eros e Tanatos, isto é, entre as forças do amor, que são as forças de ligação, de associações, de dependência, e as forças da morte, que são as forças de dispersão, de degradação e de destruição. (…) E acrescenta: Eu inscrevo-me, de qualquer maneira, no lado de Eros nesta luta permanente contra Tanatos e isso deve dar energia e esperança! (…) Eu sonho que as belezas da vida vão desabrochar o máximo possível e que os horrores da vida sejam inibidos tanto quanto possível.
Na encíclica Laudato Si’, Francisco traça um quadro sombrio e de preocupação extrema acerca do que está acontecendo à nossa Casa Comum e identifica as suas causas cuja superação reclama mudanças profundas nos comportamentos individuais, institucionais e políticos para que possa emergir uma nova civilização que assegure uma ecologia integral. Francisco não silencia, nem minimiza, os obstáculos e os desafios que é necessário vencer, mas apela à esperança como força motriz da urgente e radical mudança que importa operar.
A este propósito, relembro as suas palavras, na encíclica Laudato Si’:
Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externalizar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar.
(…) Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações.
É da prática das comunidades cristãs iniciar, neste mês, a preparação para a festa do Natal, a celebração do nascimento de Jesus de Nazaré, que anuncia a Boa Notícia da Verdade, da Justiça e da Paz. Façamos deste tempo litúrgico um exercício assumido de vigilância e de esperança activa na construção de uma nova civilização de ecologia integral.