“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. (…) ” (GS 1).
Lentamente… vamos regressando a um quotidiano que já não é o que conhecíamos e considerávamos “normal”. “Desconfinar” é agora a palavra de ordem, antes que esta economia nos mate!
Para os cristãos este momento é também o regresso à celebração da eucaristia em comunidade e coincide com a Festa de Pentecostes. Continuamos mergulhados na incerteza, mas temos o desafio de compreender as condições difíceis deste novo contexto e ler os sinais dos tempos. É preciso “dar razão da nossa esperança”.
Ao longo dos tempos, periodicamente, as pestes, guerras, fomes,massacres e outras calamidades atingiram a humanidade e interpelam-nos, ainda hoje, sobre a ação divina em circunstâncias assustadoras que não controlamos.
Agora é o nosso tempo. Como dar sentido a esta crise a partir da referência a Jesus o Messias Salvador?
Ver nisto um sinal do apocalipse é uma antecipação do futuro, resposta simples e imediata. Face às evidências de decadência da humanidade e das suas instituições, a solução seria uma mudança radical que, historicamente, tem sustentado a esperança e a coragem de muitos cristãos face ao sofrimento e à injustiça. Embora redutora, essa maneira de nos relacionarmos com Deus (uma visão de prémio e castigo como consequência dos nossos comportamentos), contribui para relativizar o presente e reforçar a confiança em Deus.
Na Bíblia, muitos momentos de grande aflição da humanidade não são vistos como castigo. Entendidos como desafios à conversão, são propostas de coerência para uma mudança radical das atitudes e comportamentos . Trata-se de mudar os comportamentos até então assumidos como “normais”. Voltar-se para Deus e, consequentemente, mudar de atitude.
A pandemia oferecer-nos-ia assim, a oportunidade para refletir sobre os caminhos de degradação que a humanidade vinha percorrendo? Bastaria identificar os culpados do mal e aprender, a lição para corrigir os erros atempadamente?
Pois não tínhamos já entrado no séc. XXI, evidenciando excesso de confiança nas capacidades humanas, na ciência e nas tecnologias para resolver todos os problemas e poder até alcançar a imortalidade?
Então, não ficara já assumido, que a fé religiosa e, em particular, do cristianismo como religião de salvação, eram superstições ultrapassadas? Que não necessitaríamos de salvação por parte de “entidades sobrenaturais”, porque podíamos alcançá-la pelos nossos próprios meios?
Essa ilusão de omnipotência humana desapareceu dando lugar a uma grande fragilidade, à vulnerabilidade perante o imprevisto e ao medo perante a falta de controle da situação e à desorientação dada a falta de soluções. Esta constatação reavivou a fé de muitas pessoas, que voltam, agora, o seu olhar atónito para Deus. Pensamentos semelhantes assaltaram os discípulos após a paixão e morte de Jesus.
Entretanto, a experiência de confinamento pôs em evidência a força dos valores que vinham sendo relativizados: a vida, a família, a amizade, a fraternidade, a gratidão, o altruísmo e a frugalidade por exemplo. Afinal a realidade insiste em nos alertar para a complexidade das situações e obriga-nos a atitudes de exigência e maturidade.
Para os cristãos, a passagem da morte na cruz para a ressurreição de Cristo convida a pensar que até os momentos mais horríveis podem dar lugar a uma vida nova. É importante recuperar a mensagem cristã original, que anuncia a Vida. As pessoas que morreram durante a pandemia não são estatísticas que nos deprimem. Acreditamos que todas experimentarão a vitória sobre a morte, porque acederam à Vida nova em Cristo.
Por outro lado, a experiência humana que segue de perto o Mestre é a do amor, da entrega e do sacrifício pelo bem de todos. Os cuidadores, os profissionais de saúde e os seniores confinados em casa e nos lares são exemplos disso.
Podemos atravessar o sofrimento com a esperança de que se transformará em alegria, encontro abraço e plenitude. Os que cuidam, que se entregam e se sacrificam pelos outros podem confiar que o seu gesto de amor não é em vão. Todo o bem que nos fazem e o bem que podemos fazer, não morrerá jamais e projeta-se até a eternidade, tal como Cristo morto e ressuscitado.
Nestes tempos de provação, em que a nossa sociedade se sente ameaçada, insegura e assustada, dar sentido à fé é ser compassivo, assumir a dor e os gestos de entrega aos outros, como manifestação da graça e da presença de Deus, entre nós; é ser capaz de perceber o dom de Deus que revela a sua presença misteriosa em todos os acontecimentos humanos feitos simultaneamente de luz e de sombra.
Não basta “ver” o sentido apocalíptico da decadência, da experiência do mal e de pecado. Nós também somos e percepcionamos a obra de Deus. O seu amor está presente entre nós de muitas maneiras; sentimos expressões da graça que revela sua grandeza, amor, entrega e esperança no interior da condição humana.
Estamos perante uma oportunidade para discernir a presença de Deus nos que sofrem, nos que amam e cuidam. E em nós.