Ano A Natal e tempo de Natal
Natal
e Tempo de Natal
Autor: Luciano Manicardi
Natal – Missa da Meia-Noite
Autor: Luciano Manicardi
Is 9,1-3.5-6; Sl 95,1-2a.2b-3.11-12.13; Tt 2,11-14; Lc 2,1-14
A Eucaristia da noite de Natal celebra o Cristo ressuscitado e que vem na glória fazendo memória do seu nascimento em carne. Se na noite pascal cantamos que “Cristo ressuscitou verdadeiramente!”, nesta noite cantamos que o Ressuscitado veio verdadeiramente em carne humana partilhando o caminho de todos os homens. Deus fez-se carne pelo nascimento, tornou-se corpo, o corpo físico de Jesus de Nazaré, e agora esse corpo crucificado e ressuscitado esperamo-lo como corpo glorioso universal e cósmico, para que a sua salvação chegue a todos os homens (2.ª leitura) e a sua paz se estenda sobre toda a terra (evangelho). Enquanto contemplamos o Deus connosco (Mt 1,23), esperamos o Deus com eles (Ap 21,3).
Anunciado profeticamente pelo renascimento glorioso das zonas setentrionais de Israel, em tempos humilhadas (1.ª leitura), o nascimento de Jesus em Belém da Judeia (evangelho) é o acontecimento histórico que está na base do renascimento do crente que, em Cristo, renega a impiedade e vive com sobriedade e justiça neste mundo (2.ª leitura).
O mistério da encarnação celebrado na noite de Natal remete directamente para o mistério do amor de Deus. O Deus que se faz homem é semelhante àquele rei que queria casar com uma rapariga paupérrima e de ínfimas origens e, para não a humilhar de maneira alguma, fez-se pobre como ela, tornando-se também ele um servo e coroando assim o seu sonho de amor. Escreve Søren Kierkegaard em comentário a esta história: “Esta é a insondabilidade do amor, o facto de se tornar, não por piada, mas séria e verdadeiramente, igual ao amado… Qualquer outro tipo de revelação seria uma impostura para o amor de Deus.”
A 2.ª leitura, cantando “a graça de Deus manifestada entre os homens, que nos ensina a viver com sobriedade neste mundo aguardando a bem-aventurada esperança e a manifestação da glória de Jesus Cristo” (cf. Tt 2,11-13), mostra o reflexo existencial da encarnação para os crentes: trata-se de assumir a vida como vocação e dever; a história como responsabilidade; a esperança do Reino como magistério anti-idolátrico
Enquanto o imperador César Augusto, que gozava de títulos divinos, demonstra o seu poder de controle sobre todos e cada um no mundo ordenando um recenseamento da terra habitada, Deus manifesta o seu senhorio sobre a história através do acontecimento “invisível” do nascimento de um menino que é o Salvador, o Cristo Senhor. Nele todos os homens são chamados a renascer e nele todo o mundo deverá ser registado, recapitulado. Apoiando-se numa antiga versão grega (dita “Quinta”) do Salmo 86,6, Eusébio de Cesareia, no seu Comentário aos Salmos, escreve: “‘No recenseamento dos povos, este nascerá lá’ (Sl 86,6). Claramente fez referência ao recenseamento durante o qual o nosso Salvador e Senhor nasceu, como mostra o evagelista, dizendo: ‘Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra’ (Lc 2,1).”
Ao recenseamento que se propõe contar os súbditos do Império (por razões militares e fiscais), opõe-se o povo de Deus, o povo dos santos que só Deus conhece e do qual nenhuma grandeza do mundo, religiosa ou profana, pode fazer-se dona. O povo dos redimidos no Apocalipse é descrito como “multidão que ninguém podia contar” (Ap 7,9) e o recenseamento do povo de Deus ordenado por David no Antigo Testamento é condenado por Deus (cf. 2Sm 24; 1Cr 21). A força da Igreja não está no número dos seus adeptos, nos números exibidos que dizem força e prestígio, nem a Igreja é chamada a alinhar entre as forças activas e poderosas no espaço público pondo sobre o prato da balança “os números” que pode reivindicar. E isto não só porque a massificação implícita na redução da pessoa a número é sempre perigosa, mas também porque só Deus escrutina o coração humano e conhece a fé do homem, a qual habita uma dimensão de mistério que não pode ser violada.
No seu nascimento, Jesus aparece entre os marginalizados, entre as “vidas descartadas”, entre aqueles que não despertam interesse e não contam. E não é sobre ele que se manifesta a luz da glória divina, mas sobre os pastores (cf. Lc 2,9): esses necessitam dela para reconhecer a presença de Deus na pobreza e fraqueza da carne humana. E como eles, também nós temos necessidade dela.
Natal – Missa da Aurora
Autor: Luciano Manicardi
Is 62,11-12; Sl 96,1.6.11-12; Tt 3,4-7; Lc 2,15-20
O encontro do homem com o acontecimento da salvação provoca a regeneração do crente através do nascimento da salvação no seu coração: esta a mensagem das leituras da missa da aurora. Este encontro exige um envolvimento total do homem chamado a reunir os seus sentidos e a pô-los ao serviço do sentido radical que o acontecimento da salvação abre à existência e que condensa em si e ordena os sentidos que o homem atribui ao viver. É assim na 1.ª leitura, em que Jerusalém é convidada a escutar a mensagem que Deus lhe envia (“Dizei à filha de Sião”) e a ver (“Olha”) a vinda salvífica do Senhor; é assim no evangelho, em que os pastores se dirigem a Belém para ver a palavra que o Senhor os fez ouvir, e glorificam a Deus por tudo aquilo que ouviram e viram; é assim na 2.ª leitura, que faz referência ao baptismo em que o neófito é imerso nas águas de regeneração para viver a sua vida em Cristo: Cristo é o sentido dos sentidos da vida.
O envolvimento radical do homem no acontecimento salvífico aparece com relevo no baptismo (2.ª leitura), que contém todos os elementos constitutivos da identidade do cristão. Um rito do século VI mostra a sensibilidade do envolvimento do baptizado com o Senhor: “Eu te assinalo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão; os olhos para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que escutes a voz do Senhor; as narinas, para que sintas o suave perfume de Cristo; os lábios, para que confesses o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”
“E aconteceu que, logo que os anjos se afastaram deles em direcção ao céu, os pastores falaram entre eles. ‘Vamos a Belém…’” (Lc 2,15). Os anjos, partindo, deixam aos pastores a responsabilidade da mensagem que lhes foi comunicada e os pastores declinam a Palavra de Deus antes de mais como diálogo recíproco: “falavam entre eles”, “reciprocamente” (loquebantur ad invicem). A observação não é banal: trata-se de um falar que é escuta comum da palavra recebida dos anjos e de escuta recíproca (“uns aos outros”: Lc 2,15), de encorajamento recíproco, de decisão comum. Se em Jesus nascido em Belém está o acto decisivo da comunicação de Deus com os homens, este acto enforma o modo de comunicar dos homens entre si. E torna-se uma importante mensagem sobre o modo de comunicar no interior da Igreja. A Palavra de Deus não é uma imposição, mas, para se tornar palavra da Igreja, anúncio da comunidade cristã, requer um diálogo, um procedimento sinodal, uma discussão, um falar uns com os outros.
O impacto da Palavra de Deus sobre a vida do homem tem efeito impulsinador, dando início a um caminho de aprofundamento da própria palavra: por isso os pastores decidem ir a Belém. Cristo é a Palavra de Deus feita carne que ilumina o caminho do homem, indicando um sentido, isto é, uma direcção (nível ético), um significado (nível filosófico), um sabor (nível estético)
“Os pastores encontraram Maria, José e o menino, que estava deitado na manjedoura” (Lc 2,16). Naquele “encontrar” há o espanto da descoberta. Descoberta surpreendente porque diz que a salvação de Deus é uma pessoa, melhor, um recém-nascido: a salvação de Deus habita a carne humana. “O Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21).
A experiência da salvação torna-se narração dessa experiência e, portanto, transmissão da fé: “os pastores anunciaram aquilo que lhes tinha sido dito sobre o menino” (Lc 2,17). Crer significa também saber narrar a fé. Não “fazer conferências sobre a fé”, e ainda menos “exibir impudicamente” aquilo que está no espaço do segredo indizível da relação com o Senhor, mas narrar, com o envolvimento do testemunho, a presença de Deus, a sua realidade operante. Do mesmo modo que a vida de Jesus se tornou narração, evangelho, anúncio portador de alegria, assim os pastores de Belém, tendo recebido o jubiloso anúncio do nascimento do Salvador e visto o menino, divulgaram-no ao seu redor. Tornam-se evangelizadores, ou melhor, tornam-se evangelho.
Natal – Missa do Dia
Autor: Luciano Manicardi
Is 52,7-10; Sl 97,1.2-3ab.3cd-4.5-6; Heb 1,1-6; Jo 1,1-18
A Palavra de Deus que se faz acontecimento histórico de salvação (1.ª leitura), que acontece sempre num espaço e num tempo precisos (2.ª leitura), finalmente fez-se carne (evangelho). Este é o vértice da vontade de amor e de encontro com o homem por parte de Deus.
A encarnação é a comunicação da vida de Deus ao homem em Cristo e esta comunicação é um acto de amor. O prólogo de João, narrando a comunicação da revelação de Deus à humanidade, não exprime um conceito teológico abstracto, mas um acontecimento vital da ordem do amor. A revelação é comunicada com um acto de amor e como um acto de amor. Com efeito, o Lógos, o Verbo que estava “voltado para Deus” (pròs tòn theón: Jo 1,1), em posição de escuta e de colóquio íntimo com o Pai, feito homem no Filho Jesus Cristo, narrou Deus aos homens graças ao seu estar “voltado para o seio do Pai” (eis tòn kólpon toû patròs: Jo 1,18), isto é, graças à sua obediência amorosa à vontade do Pai. E isto permitiu aos crentes orientarem a sua vida para a comunhão com o Pai: um sentido possível da forma verbal grega exeghésato (Jo 1,18: “narrou”, “fez a exegese”) é “abriu o caminho”. O crente que entra no movimento de escuta e obediência amorosa do Filho entra no caminho da comunhão com o Pai. É assim para o discípulo amado que, durante a última ceia, põe a cabeça no peito de Jesus (en tô kólpo toû Iesoû: Jo 13,23) e recebe a revelação do sentido daquilo que está a acontecer. O evangelho que ele escreve é, portanto, fruto desta comunicação de amor e permite ao crente que se debruce sobre isso entrar no mistério do amor de Deus. Comenta Goffredo di Admont, um monge do século XII: “O seio de Jesus é a Escritura. Aqueles que amam Deus esforçam-se por conhecer a Escritura com o único fim de alcançar um maior conhecimento de Deus, de descobrir nela o coração de Deus, o sentir de Deus. Aquele sentir que estava em Cristo Jesus e em que se funda também a vida comum e a comunhão fraterna.” A intimidade com a Escritura leva o crente a conhecer o coração de Deus na Palavra de Deus e a receber a revelação da sua glória.
O Verbo que se fez carne também se fez livro, evangelho escrito, e, assim como a fé é chamada a reconhecer o Filho de Deus no homem Jesus de Nazaré, também é chamada a reconhecer a Palavra de Deus nas palavras humanas da Escritura. Como os evangelhos são a narração escrita da glória de Deus, a vida de Jesus é a sua narração viva. Com a encarnação, a Palavra fez-se conto, narração existencial.
A encarnação exprime o acontecimento pelo qual aquele que era Deus (cf. Jo 1,1), se tornou carne (cf. Jo 1,14): o verbo no passado refere-se a uma acção pontual, a um facto histórico, a um acontecimento no espaço e no tempo. O Deus invisível tornou visível a sua glória na carne de Jesus Cristo. A carne, que indica a fraqueza e as limitações, a fragilidade e a mortalidade do homem, não é elemento que seja negado ou superado para encontrar a glória divina, pelo contrário é o lugar da glória de Deus.
João exprime isto aplicando a Jesus, ao longo do evangelho, as afirmações referidas ao Verbo eterno no prólogo. Se o Verbo é “aquele sem o qual nada existiu” (Jo 1,3), Jesus é aquele sem o qual os discípulos não podem fazer nada (cf. Jo 15,5); se no Verbo eterno “estava a vida e a vida era a luz dos homens” (Jo, 1,4), Jesus diz de si: “eu sou a vida” (Jo 11,25; 14,3), e: “eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). A carne glorificada de Jesus é o caminho que conduz o crente à comunhão com o Pai. E só o acolhimento na fé da sua própria carne (ou seja, da sua condição humana limitada, contingente, caduca) como iluminada pela luz da glória de Deus e vivificada pela ressurreição de Cristo permite ao crente construir relações de fraternidade e comunhão que narrem a luz e a vida de Deus aos homens. De facto, a experiência da glória de Deus requer ser comunicada e a narração do Deus invisível concretizada pelo Verbo feito carne deve ser continuada por parte dos filhos de Deus.
© – Luciano Manicardi