“PILATOS LHE DISSE: O QUE É A VERDADE?”
Pregação da Sexta-feira Santa de 2022 – por Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
Na narrativa da Paixão, o evangelista João dá uma particular importância ao diálogo de Jesus com Pilatos, e é sobre ele que queremos refletir por alguns minutos, antes de prosseguir com a nossa liturgia.
Tudo começa com a pergunta de Pilatos: “Tu és o Rei dos Judeus?” (Jo 18,33). Jesus quer fazer Pilatos entender que a pergunta é mais séria do que ele pensa, mas que tem um significado apenas se não repetir simplesmente uma acusação de outros. Por isso, pergunta, por sua vez: “Dizes isso por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim?”.
Ele procura conduzir Pilatos a uma visão superior. Fala do seu reino: um reino que “não é deste mundo”. O Procurador entende apenas uma coisa: que não se trata de um reino político. Se se quer falar de religião, ele não quer entrar neste gênero de questões. Por isso, pergunta com evidente ironia: “Então, tu és rei?”. “Jesus respondeu: ‘Tu dizes, que eu sou rei’” (Jo 18,37).
Declarando ser rei, Jesus se expõe à morte; mas, ao invés de se desculpar negando, afirma-o com força. Deixa fluir a sua origem superior: “Vim ao mundo…”: portanto, misteriosamente existia antes da vida terrena, vem de um outro mundo. Ele veio à terra para ser testemunha da verdade. Trata Pilatos como uma alma que necessita de luz e de verdade e não como um juiz. Ele se interessa pelo destino do homem Pilatos, mais do que o seu próprio. Com o seu apelo para receber a verdade, quer induzi-lo a retornar a si mesmo, a olhas as coisas com olhar diverso, a se colocar acima da contenda momentânea com os judeus.
O Procurador romano capta o convite que Jesus lhe dirige, mas, sobre este gênero de especulações, é cético e indiferente. O mistério que vislumbra nas palavras de Jesus lhe causa medo e ele prefere terminar o diálogo. Por isso, murmura consigo, dando de ombros: “O que é a verdade?”, e deixa o Pretório.
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Como é atual esta página do Evangelho! Também hoje, como no passado, o homem não deixa de se perguntar: “O que é a verdade?”. Mas, como Pilatos, volta distraidamente as costas àquele que disse: “Vim ao mundo para dar testemunho da verdade” e “Eu sou a Verdade!” (Jo 14,6).
Pela internet, tenho acompanhado inúmeros debates sobre religião e ciência, sobre fé e ateísmo. Uma coisa chamou minha atenção: horas e horas de diálogo, sem que jamais fosse mencionado o nome de Jesus. E caso a parte crente ousasse mencioná-lo e alegar o fato da sua ressurreição dos mortos, imediatamente se tentava encerrar o discurso como não pertinente ao tema. Tudo acontece “etsi Christus non daretur”: como se no mundo jamais tivesse existido um homem chamado Jesus Cristo.
Qual é o resultado disso? A palavra “Deus” se tornar um recipiente vazio que cada um pode preencher ao seu bel-prazer. Mas, justamente por isso, Deus se preocupou em dar ele mesmo um conteúdo ao seu nome: “O Verbo se fez carne”. A Verdade se fez carne! Por isso, o extenuante esforço de deixar Jesus fora do discurso sobre Deus: ele tira do orgulho humano todo pretexto para decidir por si o que é Deus!
“Ah, certo: Jesus de Nazaré!”, objeta-se. “Mas há quem duvide até mesmo que tenha existido!”. Um conhecido escritor inglês do século passado ‒ conhecido pelo grande público por ser o autor do ciclo de romances e de filmes “O Senhor dos anéis”, John Ronald Tolkien ‒ em uma carta, dava esta resposta a seu filho, que lhe apresentava a mesma objeção:
É necessária uma extraordinária vontade de não crer para supor que Jesus jamais tenha existido ou que ele não tenha pronunciado as palavras a ele atribuídas, tanto que elas são impossíveis de serem inventadas por nenhum outro ser no mundo: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,58); e “Quem me viu, viu o Pai (Jo 14,9)[1].
A única alternativa à verdade do Cristo, acrescentava o escritor, é que se trate de “um caso de megalomania demente e de uma fraude gigantesca”. Poderia, contudo, um caso do gênero, aguentar por vinte séculos de implacável crítica histórica e filosófica e produzir os frutos que tem produzido?
Hoje se vai além do ceticismo de Pilatos. Há quem pense que não se deva nem mesmo pôr a pergunta “O que é a verdade?”, porque a verdade, simplesmente, não existe! “Tudo é relativo, nada é certo! Pensar diversamente é presunção intolerável!”. Não há mais espaço para “as grandes narrativas sobre o mundo e sobre a realidade”, inclusive sobre Deus e sobre Cristo.
Irmãos e irmãs ateus, agnósticos ou ainda em busca (caso haja alguém na escuta): não é um pobre pregador como eu que pronunciou as palavras que agora estou prestes a vos dizer. É alguém que muitos dentre vós admiram, do qual escrevem e do qual, talvez, consideram-se também discípulos e continuadores: Søeren Kierkegaard, o iniciador da corrente filosófica do Existencialismo:
Fala-se tanto – afirma ele ‒ de misérias humanas; fala-se tanto de vidas desperdiçadas. Mas desperdiçada é somente a vida daquele homem que jamais se deu conta, porque jamais teve, no sentido mais profundo, a impressão de que exista um Deus e que ele –justamente ele, o seu eu – esteja diante desse Deus[2].
Afirma-se: há muita injustiça e muito sofrimento no mundo para se crer em Deus! É verdade, mas pensemos em quanto mais absurdo e motivo de desespero se torna o mal que nos circunda, sem a fé em um triunfo final da verdade e do bem. A Ressurreição de Jesus dos mortos, que celebraremos em dois dias, é a promessa e a garantia de que haverá aquele triunfo, porque já iniciou com ele.
Se eu tivesse a coragem do apóstolo Paulo, eu também deveria gritar: “Eu vos suplico: deixai-vos reconciliar com Deus!” (2Cor 5,20). Não “desperdiceis” também vós a vida! Não deixeis este mundo como Pilatos deixou o Pretório, com aquela pergunta no ar: “O que é a verdade?”. É muito importante. Trata-se de saber se temos vivido por algo, ou em vão.
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O diálogo de Jesus com Pilatos oferece, porém, a ocasião também para uma outra reflexão, voltada, desta vez, para nós, fiéis e homens de Igreja, não aos de fora. “Teu povo e os chefes dos sacerdotes te entregaram a mim!”: Gens tua et pontifices tradiderunt te mihi (Jo 18,35). Os homens da tua Igreja, os teus sacerdotes te abandonaram; desqualificaram o teu nome com perversidades horrendas! E nós ainda deveríamos acreditar em ti? Também a esta terrível objeção, eu gostaria de responder com as palavras que o mesmo escritor mencionado escrevia ao filho:
O nosso amor poderá ser esfriado e a nossa vontade lesionada pelo espetáculo das deficiências, da loucura e dos pecados da Igreja e dos seus ministros, mas não creio que quem, uma vez, acreditou de verdade, abandone a fé por estas razões, menos de todos os que têm algum conhecimento da história… Isso é cômodo porque nos leva a desviar o olhar de nós mesmos e das nossas culpas e achar um bode expiatório… Penso que sou sensível aos escândalos, assim como tu o és e qualquer outro cristão. Tenho sofrido muito em minha vida por causa de padres incultos, cansados, fracos e, às vezes, também maus”.
Um resultado do gênero era, no mais, de se esperar. Começou antes da Páscoa, com a traição de Judas, a negação de Simão Pedro, a fuga dos apóstolos… Chorar, então? Sim – recomendava Tolkien ao filho ‒ mas por Jesus ‒ pelo que ele deve suportar ‒, antes do que por nós. Chorar –acrescentamos hoje – com as vítimas e pelas vítimas dos nossos pecados.
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Uma conclusão para todos, crentes e não crentes. Este ano, celebramos a Páscoa não ao som de sinos, mas com o barulho nos ouvidos de bombas e explosões não distante daqui. Recordemos o que Jesus respondeu um dia à notícia do sangue dos galileus que Pilatos havia misturado ao dos sacrifícios, e da queda da torre de Siloé: “Se não vos arrependerdes, porém, perecereis todos do mesmo modo” (Lc 13,5). Se não mudardes as vossas lanças em foices, as vossas espadas em arados (Is 2,4) e os vossos mísseis em fábricas e casas, perecereis todos do mesmo modo!
Os eventos improvisamente nos recordaram uma coisa. As disposições do mundo mudam de um dia para o outro. Tudo passa, tudo envelhece; tudo ‒ não somente “a feliz juventude” ‒ desvanece. Há um só modo de se subtrair à corrente do tempo, que arrasta tudo atrás de si: passar ao que não passa! Pôr os pés em terra firme! Páscoa significa passagem: este ano, façamos todos uma verdadeira Páscoa, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs: passemos Àquele que não passa. Passemos agora com o coração, antes de passar um dia com o corpo!
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[1] Cf. From the Letters of J.R.R. Tolkien, ed. Humphrey Carpenter, with Christopher Tolkien, Houghton Mifflin 1981 (trad. Ital., Rusconi, Milano 1990).
[2] Cf. Søeren Kierkegaard, La malattia mortale, II, in Opere, a cura di C. Fabro, Firenze 1972, p. 633.