As generosas utopias que fizeram acreditar na superação de problemas graves, tais como a fome no mundo, as guerras em larga escala ou as doenças endémicas, geraram uma vaga de optimismo que durou décadas. Foram muitos aqueles que acreditaram num mundo novo, em rápida gestação e com nascimento anunciado. O próprio Concílio Vaticano II reflectiu em parte este optimismo generalizado que atingiu o seu auge nas décadas de sessenta e setenta, mas que começou a desintegrar-se na parte final do pretérito milénio.
Em vez das novas manhãs que se anunciavam, deparamos hoje com o crescimento descontrolado das manchas de miséria e com um vazio sem nome que invade as sociedades da abundância, sob forma de uma espécie de doença degenerativa com sintomas preocupantes: quanto mais temos, mais queremos e quanto mais queremos, mais desesperamos. A própria meritocracia, agora tão propalada como a chave para tirar o nosso país da crise, está a gerar uma insatisfação rebarbativa, cujas razões são facilmente compreensíveis: o fim último da vida não pode ser a excelência do desempenho profissional, mas sim a felicidade da pessoa. Não há, por isso, nenhum choque tecnológico que nos possa valer, se porventura o progresso técnico e científico fizer estiolar a Sabedoria de viver. Se dúvidas tivéssemos, bastaria dar suficiente atenção ao que se passa à nossa volta para reconhecer que a sociedade de hoje, a nível global, está barbarizada por relações de força marcadas por ímpetos de desumanidade e de intolerância ameaçadora. Como disse Bento XVI num discurso dirigido aos participantes num seminário promovido pela Congregação para a Educação Católica, «o ser humano nunca pode ser sacrificado aos êxitos da ciência e da técnica». Infelizmente, o risco deste sacrifício é bem real, pois verificámos que quando a sociedade sacraliza a racionalidade, torna-se medonhamente irracional, justamente porque constrói uma lógica que nada tem a ver com os valores da humanidade. Chegámos a um momento da história em que percebemos com mais clareza que a ciência é capaz de tudo, menos de responder às questões fundamentais do homem.
Nunca foi fácil testemunhar as razões da nossa Esperança, essa certeza que, sendo a força motriz das mais ousadas energias do homem, assenta, contudo, na debilidade do acolhimento de verdades que os sentidos não percepcionam. Precisamos de olhar a história com uma profundidade bem mais penetrante do que aquela que se fica pela espuma dos acontecimentos mediáticos. Ficaríamos menos perturbados se valorizássemos convenientemente o que houve de mais válido nos sonhos transformadores do passado para daí sorver energias de confiança capazes de nos iluminar na construção de novos caminhos. Um olhar atento sobre esse passado ajudar-nos-á a acreditar que a História não está predeterminada para o fatalismo. Por isso, o futuro deve ser encarado como uma grande janela aberta de onde se entrevêem inauditas possibilidades. São essas perspectivas de mais longo alcance que nos permitem acreditar nas oportunidades de conectar o mundo de hoje com as propostas do Evangelho, essa fonte perene de onde dimanam as verdadeiras energias da Esperança.
Depois de o racionalismo moderno ter fechado o homem num labirinto sem qualquer vislumbre de saída, é hoje mais viva a percepção de que não basta a razão para compreender o mistério homem. A busca de caminhos que libertem o homem enjaulado numa civilização redutora terá a ver com esta sensação de asfixia provocada pela tecnologia obsessionada pelo pragmatismo. Não será por acaso que a presente geração busca no erotismo uma alternativa para as relações afectivas que se tornaram precárias. É que pode haver nessas atitudes um inconsciente protesto contra a civilização técnica, essa rasoira que fixa os modelos de sucesso em estereótipos que não fazem a humanidade feliz. E poderá haver também em tais manifestações aquilo que Teilhard de Chardin designou como uma «ávida vontade de ser mais», a que a Igreja não tem conseguido dar resposta credível.
Pelo que atrás fica dito, pode-se inferir que não será pelo caminho das ideias que acolheremos os anseios mais profundos da pessoa, mas antes pelas expressões do amor e do carinho, as únicas fontes de energia que podem refazer o homem por dentro. O testemunho cristão reside mais numa experiência partilhada do que numa mensagem transmitida. Por isso, a nova evangelização terá de ser menos doutrinal e menos moralizante para tomar mais a sério as feridas do coração, sem esquecer as exigências da justiça. As pessoas de hoje necessitam de testemunhos que lhe revelem um Deus que nos ama como uma mãe, conforme ficou patente no gesto de Cristo, ao alimentar-nos com a sua própria carne. O mundo moderno, cheio de falsas imagens de um Deus ciumento da nossa felicidade, tem necessidade imperiosa de sentir que o alimento de imortalidade pode circular nas nossas veias, estimulando-nos a fazer da existência um dom para os irmãos.
Esta sabedoria de vida não resulta de um sistema político. Basta ver o que aconteceu à humanidade ao longo do último século, para se perceber que, seja qual for o regime, são sempre os fortes que oprimem os fracos. As fontes da nossa confiança brotarão com mais pujança se emanarem do íntimo de corações que experimentaram ao vivo as surpreendentes energias do amor. Esta capacidade de entrega aos outros como caminho de realização pessoal e de felicidade duradoira só subsistirá, se em nós for inquebrantável a certeza de que o mundo tem um sentido que a frieza tecnicista da ciência não pode assegurar. É que o combate contra o calculismo mercantil da actual ideologia dominante parte do reconhecimento de que esse espírito mundano nos habita, insinuando-se nos nossos secretos desejos de domínio. Mas tal verificação não significa que este combate releve apenas da esfera privada, pois ele supõe que cada um de nós arrisque uma palavra que rompa com o pensamento dominante, em nome dos valores da fé cristã.
O principal actor da nova criação é sempre o Espírito de Deus. Daqui a necessidade de cultivar uma atitude contemplativa, sem que isso signifique uma doce quietude que nos divorcie dos problemas do mundo. É que a Igreja tem crescido muito em organização mas o que ela mais precisa cultivar nesta época de vazio é uma experiência orante, na solidão ou no meio das multidões, no silêncio ou no zunzum trepidante das ruas e das fábricas. A Igreja primitiva tinha uma organização incipiente mas isso não a impediu de testemunhar ao mundo a imagem de um Deus com rosto humano que fala de coração a coração, de olhar para olhar.
É sinuoso e moroso o caminho da nossa conversão interior. Não nos admiremos que também seja demasiado lenta a transformação do mundo. Toda a nossa vida não basta para o transformar, pois chegaremos à nossa hora com a consciência de ter deixado muitas tarefas incompletas. Mas isso, em vez de constituir motivo de desânimo, deverá afervorar o nosso sentido de missão, como nos exorta o Apocalipse, escrito justamente para ajudar os crentes a alimentar a esperança em períodos difíceis.
Diz o povo que a Esperança é a última coisa a morrer. Sendo a última a morrer, é também a que alimenta as demais. Até por isso, deverá ser a primeira a ser vivida e a ser testemunhada acima de qualquer outra. Mas nunca o será, se nos fecharmos em nós mesmos, numa espiritualidade sem próximo e sem história.
Manuel António Ribeiro – Porto. 2007