Manuela Silva – Janeiro 2019
(…) tomar a sério a política, nos seus diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da liberdade de escolha que lhes é proporcionada, para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação e da humanidade…
As recentes manifestações de contestação social (sejam elas as greves simultâneas por parte de distintos sectores socioprofissionais que se vêm sucedendo em Portugal ou os movimentos inorgânicos, como foram os “coletes amarelos” nascidos em França e, posteriormente, replicados em outras geografias, incluindo o nosso País) merecem reflexão, não só pelos seus efeitos, mas também pelas causas que estão na sua génese e propalação e, sobretudo, porque é urgente ir ao encontro destas vozes, saber escutá-las e dar-lhes resposta.
Não é por acaso que tais manifestações surgem em países com níveis de riqueza e de prosperidade elevados, civilizações avançadas no conhecimento científico e tecnológico e no reconhecimento de direitos humanos fundamentais, espaços de liberdade e garantidos direitos constitucionais de igualdade de oportunidades para todos. Por outro lado, dir-se-ia que, em termos comparativos, tanto no espaço como no tempo, a realidade, que é objecto de contestação, apresenta, no entanto, uma evolução positiva. Com efeito, é inegável que vive-se melhor hoje do que há 30 ou 50 anos e a Europa, com o seu modo de vida, continua a ser um polo de atracção para refugiados e migrantes de outros continentes.
Porquê, então, esta onda de contestação social?
Não é difícil descortinar algumas razões. Cito, a título de exemplo, três causas principais, reconhecendo, embora, que outras existirão: o paradoxo da grande desigualdade real, cada vez mais desocultada pela acção conjugada dos media e das redes sociais, em contradição com a afirmação de princípios de dignidade humana e de justiça social; o descarte da noção de bem comum no modelo de uma economia cada vez mais globalizada e financeirizada, com consequências na restrição das oportunidades de emprego e na falta de maior equidade na repartição do rendimento; o divórcio que, por múltiplas razões, se vem aprofundando entre os cidadãos e a classe política, a qual se apresenta desinteressada e desvinculada dos reais problemas da vida dos eleitores, dependente de interesses dos mais poderosos, subserviente da lógica do sistema, propensa à corrupção, manifestamente incompetente relativamente à construção do futuro e incapaz de escutar e dar resposta às aspirações das gerações mais jovens.
Este leque de razões são suficientes para gerar descontentamento em largas faixas da população e favorecer manifestações mais ou menos ruidosas de contestação social. Todavia, é preocupante constatar que, sob a aparência de defesa de um interesse colectivo, estas manifestações inorgânicas são expressão de um individualismo exacerbado que atenta mais nos interesses imediatos de cada um do que no bem comum da cidade, do País e do mundo e, mais remotamente ainda, no cuidar da casa comum e do seu futuro.
Não pode esquecer-se que o individualismo é o inimigo número um da convivência social e da indispensável cooperação de cada cidadão para tornar o mundo melhor.
Aquilo que hoje conhecemos acerca da crise ecológica mostra à evidência como é fundamental fazer ressurgir a ideia do bem comum como horizonte da economia e da política, mas também como matriz axial das atitudes e dos comportamentos individuais nas suas múltiplas relações e níveis de concretização.
Assim sendo, não só os actores políticos, mas todos nós somos chamados a rever as nossas opções de vida em função do bem comum, como um dos pilares da construção da paz e de um desenvolvimento sustentável.
O que é o bem comum?
Na perspectiva do pensamento social da Igreja, o bem comum visa o desenvolvimento integral das pessoas e dos grupos que constituem uma dada sociedade e, mais amplamente, o desenvolvimento da própria Humanidade e do Planeta em que habitamos.
A economia e a política devem orientar-se para a prossecução deste objectivo nuclear dos alicerces da organização da vida colectiva, assim como os cidadãos individualmente considerados, no que concerne às suas atitudes e comportamentos nas suas múltiplas relações. O mesmo se pode dizer de todos os corpos intermédios da sociedade ou seja as famílias, as empresas, as organizações.
Termino com uma citação do papa Bento XVI, evocada na mensagem do Papa Francisco para a celebração do Dia mundial da Paz de 2019:
(…) todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. (…) Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. (…) A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana.
Créditos de imagem: Água – um bem comum ameaçado. Águas pela Paz – II Seminário Internacional Brasília. 2018