© "Via sacra"  Bill Ross
 

Abril - 2008

 

A Tua Palavra Ilumina os Meus Passos

 

Êxodo

Não desejar aquilo que pertence ao teu próximo

   

Êxodo 20, 17

   
Autora: Nicoletta Crosti
 

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Não cobices a casa do teu semelhante: não cobices a sua mulher, nem os seus escravos, nem o seu gado, nem os seus jumentos, nem coisa nenhuma do que lhe pertence. Êxodo 20,17

A palavra usada ‘hamad“, em Latim concupire, não se refere a um desejo vago, mas ao firme e determinado propósito, de realizar a cobiça que se experimenta.

Para perceber exactamente o sentido desta palavra, é útil ler toda a história de Amnon, o filho primogénito de David (2 Sm13), que quer, a todo o custo e sob mau conselho, alcançar a satisfação do desejo, mesmo sabendo violar qualquer código de honra.

É também esta mesma cobiça de David por Betsabé (2 Sm 11) que leva ao duplo pecado de adultério e homicídio, correlacionado com o engano e a traição.

No Ex. 20,17 a casa figura como o primeiro objecto de desejo. Com a expressão a casa o autor refere-se à propriedade fundiária com tudo o que é essencial à vida da família e do clã: a mulher, o escravo, a escrava, o boi, o jumento.

Com o verbo desejar/desejar ardentemente, o autor refere-se àquela pulsação interior, àquela fonte de desordem e de desobediência, que habita em cada homem e em cada mulher e que é, decisivamente, a causa primeira do mau procedimento humano. O apelo instintivo para o mal que a pessoa humana deve dominar.


“Porventura não farias bem em levantar a fronte? Mas, se não o fazes, o pecado aninha-se-te à porta. As suas intenções são contra ti, embora tu possas dominá-lo”. (Gn 4,7)

Toda a pessoa humana experimenta aquela luta interior que Paulo lembra na Carta aos Romanos, in Rm 7,14-25 (Tg 1,13-15) e que deve ser superada com a ajuda do Espírito (Gl 5,16-26).

A este respeito Jesus é muito explícito em Mc 7, 14-23:

“Do seu íntimo, na verdade, isto é, do coração das pessoas vêm os maus pensamentos e tudo os que as leva à imoralidade, ao roubo, ao crime...”.
(ver igualmente Mt 5,28)

Este ensinamento de não se deixar tomar pela cobiça, quer incentivar todos a colocar como última meta do desejo, não só a própria vontade e o próprio bem, mas também o bem e o desejo dos outros. Enquanto sociedade de consumo, a nossa sociedade afasta-se desta perspectiva. É considerado normal ter sempre mais, sem preocupação com os nossos irmãos. É considerada uma coisa boa a concorrência em que o irmão pode tornar-se inimigo. Diz Choraqui: “A economia de mercado baseia-se na forte pulsão do desejo. A publicidade incita o homem ao consumo do que não tem. Assim como o desejo é uma função da vida, a cobiça pode tornar-se um instrumento de morte ”. Disto é exemplo o episódio referido no Livro dos Números (Nm.21,4-9; 11,4-10), quando os israelitas não se satisfazendo mais com o maná, um alimento pobre, cobiçam outro.

Com o versículo Ex 20,17 concluem-se as dez palavras, que se centram todas à volta de dois grandes pilares :

1. A recusa de qualquer idolatria Eu é que sou o Senhor e mais ninguém (Is 45,18). Nada pode ocupar o lugar de Deus, nem uma pessoa humana, nem um ser vivo, nem uma ideologia, nem a ciência, nem a técnica, nem o mercado, nem o dinheiro… a lista pode ser infinita, dada a facilidade com que a criatura coloca outra coisa como valor supremo, no lugar de Deus.

2. A procura da justiça. Procura a justiça, e só a justiça (Dt 16,20). A justiça humana deve modelar-se a partir da justiça divina, que é terreno de salvação e de vida plena para todos. É qualquer coisa que vai além da justiça humana, que se enforma no respeito dos direitos de cada um de nós. É empenhar-se em ajudar a outra pessoa a atingir em pleno a imagem de Deus que traz em si. Sejam santos porque eu sou santo (Lv 11,45).

Este Decálogo que Adonai dá directamente ao povo, sem a mediação de Moisés, é o âmago do acordo da Aliança que Ele estipulou com Israel. O amor a Deus e o amor ao próximo, estão estreitamente ligados, como recordará Jesus (Mt 22, 34-40).

É ordenado ao povo que ponha as dez palavras em prática para permanecer coerente com a responsabilidade assumida no monte Sinai. “Todo o povo então respondeu: “Faremos tudo o que o Senhor ordenou!” (Ex 19,8). Note-se que esta declaração de Israel precede o conhecimento dos Dez Mandamentos, é feita confiando cegamente num Deus que se crê Salvador. Isto é, ainda hoje, a atitude típica do Hebreu praticante, que confia no seu Deus e vive, sem contestar, de acordo com todas as normas que ele requer, mesmo que lhe possam parecer estranhas.

“Povo de Israel escuta estas coisas e põe-nas em prática. Assim serás feliz…” Dt 6,3.

Os dez mandamentos têm como último alvo tornar a criatura feliz por viver e por ser capaz de temer ao seu Deus.
(Dt 5,32-6,3; Jr 1,25).

Na tradição Hebraica

Uma característica marcante da leitura hebraica da Torah é a atenção às palavras que são empregues e ao seu posicionamento no texto. Por isto se interrogam os rabinos sobre a articulação que poderá haver entre o primeiro e o último termo do decálogo. No texto hebraico o primeiro termo é Eu (“Eu Sou” do v. 2), e o último é próximo (v.17). Isto indica que os mandamentos se desenvolvem na relação do Eu com o próximo, que não se pode eliminar ou desconhecer. Todo o Decálogo, e até o primeiro mandamento, que parece envolver só Deus e a sua criatura, na realidade reflectem-se na relação que ligam os seres humanos uns aos outros.

O próximo, em hebraico rea, vem da raiz ra, (a mesma raiz de mal), que significa instabilidade, oscilação. O próximo é por isso alguém que não tem nem definição, nem estabilidade, porque está sempre em movimento, aberto a todas as possibilidades e a todos os futuros, que não pode ser descrito de uma vez por todas, em definitivo. Amarás o teu próximo deveria ser melhor expresso assim: respeitarás a instabilidade existencial do outro, que te recorda a tua mesma instabilidade.

Por isso amar o teu próximo é difícil. Mas é com esta alteridade que eu me devo sempre confrontar e devo respeitá-la, sabendo que eu não a posso nem possuir, nem manipular.

Tudo isto me vem recordado nas dez palavras que são a carta das relações justas entre os homens.

As dez palavras, por isso, contestam uma felicidade individualista e o individualismo como fonte de bem-estar.

O verdadeiro bem-estar está estreitamente ligado ao reconhecimento, em concreto, do valor infinito do outro.

   

Tradução: Ana Luísa Teixeira

     
   

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