Ser para os Outros

Manuela Silva

Setembro 2013

 

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Bird taking an offer of food
© Beowulf Sheehan - Comet/Corbis.2007 [DC]
 
dá-nos a graça de voltar
aos sítios fundadores
que nos iniciem no gosto das coisas
e de nós próprios
e que a memória do dom
desperte em nós o dom
do encontro sem medida.
José Augusto Mourão, in O Nome e a Forma

Dentro em breve retomaremos as nossas rotinas, de trabalho, relações sociais, paisagens, afazeres vários, depois de um tempo outro, em que nos expusemos a situações e acontecimentos diferentes dos que marcam os nossos quotidianos mais comuns. Na melhor das hipóteses, tivemos tempo para rever critérios e opções de vida e, talvez, para formular algum propósito de mudança que queremos concretizar nos meses que seguem. Agora é tempo oportuno para olhar em frente e ir ao encontro da realidade que nos espera.

Regresso deste mês de Agosto com uma convicção, mais firme do que nunca, de que todo o ser humano é um ser em devir, um ser em construção, que só encontra a sua realização autêntica quando se dispõe a entrar numa dinâmica permanente de escuta e resposta, que combine os seus desejos íntimos com a realidade exterior em que está inserido. Quando tal dinâmica afrouxa, a vida pessoal torna-se amorfa, coisifica-se, e a singularidade esperada de cada vida humana esfuma-se, deixando um inevitável rasto de insatisfação e alienação.

Então, o vazio toma conta do lugar da esperança e é grande o risco de derivas depressivas, originadas e alimentadas pelo rastilho das múltiplas injustiças e desmandos que não podemos – nem devemos – ignorar, em relação aos quais experimentamos uma dolorosa situação de impotência, face aos poderes instalados, à complexidade e rigidez dos sistemas que regem as nossas vidas, à manifesta impreparação das pessoas para ajuizarem das situações e fazerem valer direitos fundamentais de melhor qualidade de vida, solidariedade e bem comum.

Muitas das pessoas que conhecemos, incluindo entre as gerações mais jovens, sofrem desta grave e preocupante doença social, que se manifesta sob a forma de acomodação e passividade ou, em modalidade mais agressiva, o individualismo do salve-se quem puder, doença contra a qual julgam poder lutar, erguendo muros de indiferença ao sofrimento ou refugiando-se em torres de marfim aonde não entrem clamores alheios.

A via de saída é, seguramente, a oposta. A meu ver, o que nos resta é procurar manter viva a coragem de prosseguir num caminho de libertação das amarras do nosso egoísmo, nas suas múltiplas vertentes, não desistir de ir ao encontro de si mesmo através do encontro com o outro, reconhecendo-se, interiormente, como parte de uma realidade mais profunda, mais vasta e mais bela: a Humanidade, a Vida, Deus.

Aprender a ser para os outros e pô-lo em prática, nos mais ínfimos actos e nas mais banais escolhas, é, na nossa sociedade e no tempo presente, uma prioridade realista e urgente, que importa passar às novas gerações, sobretudo através de um testemunho pessoal e comunitário que desperte o gosto pela Vida e o sentido de responsabilidade por conservá-la e fazer frutificar, dando lugar ao outro, criando e fortalecendo laços, valorizando a solidariedade e o empenho pelo bem comum.

Como adverte José Augusto Mourão, há que saber voltar aos sítios fundadores, ao gosto das coisas e de nós próprios, à memória do dom e do encontro sem medida.

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