Ano A 29 domingo tempo comum


XXIX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
XXIX domingo do tempo comum
Autor: Luciano Manicardi
Is 45,1.4-6; Sl 95,1.-3.4-5.7-8.9-10ac; 1Ts 1,1-5b; Mt 22,15-21
O senhorio de Deus está no cerne tanto da 1.ª leitura como do evangelho. Isaías apresenta uma audaciosa página de teologia da história na qual se afirma que Ciro, rei persa, portanto pagão, é colocado por Deus como Messias, numa extensão inaudita daquela que era uma prerrogativa da dinastia davídica. A passagem profética sublinha a absoluta liberdade de Deus e a sua unicidade (“Eu sou o Senhor e não existe outro”: Is 45,6). O evangelho mostra a relativização das autoridades humanas, mesmo o imperador (que nesse tempo era divinizado), diante de Deus. Se a autoridade estatal pode exigir taxas e tributos (cf. Rm 13,7), se às autoridades é devido o respeito (cf. Rm 13,7), já o temor é reservado a Deus (cf. 1Pe 2,17), criador e senhor de todo o homem.
A resposta de Jesus à pergunta com rasteira que lhe é feita pelos seus adversários segue duas pistas: evita a politização da imagem de Deus e opõe-se à sacralização do poder político. De facto, Jesus, por um lado, distancia-se dos zelotas que consideravam Deus como único “César” legítimo e, pelo outro, critica a sacralização do poder político desmitificando César. Em ambos os casos estamos perante tentações idolátricas. No primeiro caso, a tentação é de dar a Deus o que pertence a César, à entidade estatal, caindo em posições religiosas totalitárias e não dialógicas, desrespeitadoras da “laicidade” do Estado e do poder político; no segundo, a tentação é de dar a César o que pertence a Deus, no âmbito de uma absolutização do poder político.
É interessante o comentário de Søren Kierkegaard a esta passagem, comentário elaborado sobre o tema da infinita indiferença de Jesus em relação a César e da infinita diferença que ele põe entre Deus e César: “Ó infinita indiferença! Que César se chame Herodes ou Salmanasar, que seja romano ou japonês, é coisa que a Jesus não importa minimamente. Mas, por outro lado, que abismo de infinita diferença ele estabelece entre Deus e César.”
As palavras de resposta de Jesus aos seus interlocutores são particularmente importantes na sua segunda parte, quando Jesus acrescenta a afirmação – não necessária porque não pedida na pergunta que lhe tinha sido feita – referente a “dar a Deus o que é de Deus”. Esta reivindicação significa que, se o imperador exige para si o que pertenceria a Deus, como a adoração, o cristão – recordado da palavra que diz: “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens” (Act 5,29) – não tem de lha prestar, antes pode até enfrentar o martírio, mostrando que só Deus é o Senhor da vida.
Tertuliano escreve: “Quais serão as coisas de Deus que são similares ao dinheiro de César? Entende-se a imagem e a semelhança com ele. Ele manda, portanto, que se entregue o homem ao criador a cuja imagem e semelhança foi feito” (Contro Marcione IV,38,1). Se a questão da imagem remete naturalmente para o homem criado por Deus e capax Dei, a questão da inscrição encontra-se numa passagem de Isaías em que se refere a pertença do homem a Deus. Os convertidos à fé no Deus de Israel usarão na mão a inscrição “Do Senhor” e dirão: “Eu pertenço ao Senhor” (Is 44,5). As palavras de Jesus desafiam todo o crente a fazer-se a pergunta: a quem pertenço? Quem é o meu Senhor?
Na dialéctica posta por Jesus entre César e Deus situa-se a condição do crente que está no mundo, mas não é do mundo (cf. Jo 17,11.16), que habita a cidade secular, mas espera o Reino de Deus, que vive a pólis, mas que tem a políteuma, a cidadania nos céus (cf. Fl 3,20). O cristão vive uma fidelidade autêntica à terra e à pólis graças à sua reserva escatológica, à sua espera escatológica.
Dar a Deus o que é de Deus é tomado também no sentido de actuar para que o mundo – saído das mãos de Deus e confiado por ele aos homens –, na sua organização e nas suas instituições, possa corresponder aos requisitos de justiça e de direito que são próprios da práxis messiânica.
O que é de Deus é também, exactamente, o que é do homem e no homem, o humano. E entregar a Deus o que é dele implica igualmente o dever humano de tornar-se a sua própria humanidade, de humanizar o mundo e as suas relações.
© – Luciano Manicardi